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Simone de Oliveira representa hoje, para o bem e para o mal, um Portugal desaparecido que renasce. É notável como esta mulher de 75 anos foge aos arquivos da RTP Memória, resiste à pacatez da apose..." /> Simone, uma mulher vendaval - Quinta do Careca - Record

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Simone, uma mulher vendaval

18 Outubro, 2013 1038 visualizações

Simone de Oliveira representa hoje, para o bem e para o mal, um Portugal desaparecido que renasce. É notável como esta mulher de 75 anos foge aos arquivos da RTP Memória, resiste à pacatez da aposentadoria e vence ainda o maior inimigo de um cantor ou actor: o esquecimento. Eu sei que se trata de profissões que garantem aos melhores uma certa imortalidade. Porque podem ter longas carreiras, continuar ativos até tão tarde quanto a saúde lhes permita e legar, aos vindouros, uma marca inapagável.

Mas foram precisamente os aplausos de que se alimentaram, a admiração pública de que desfrutaram e o estatuto que um dia tiveram que, ao dissipar-se, deixaram uma sensação amarga, difícil de ultrapassar e que o abandono pode mesmo vir a tornar insuportável. Vejo amiúde nas televisões esses tristes fantasmas, agarrados ao passado com o desespero próprio de quem não soube envelhecer, viu embaciar o velho brilho de outrora ou simplesmente não conseguiu entender as novas exigências de um mundo que gira a uma velocidade impossível de acompanhar.

Não creio que Simone padeça desse mal. Tem uma personalidade muito forte, egocêntrica, por vezes pretensiosa e que chega a roçar o cabotinismo. Frontal e desbocada, ela nunca viveu no lodo das meias tintas – ama ou odeia, gosta e desgosta, está e não está. Habituámo-nos a aceitá-la assim, seria outra pessoa, e seria banal, se cultivasse a hipocrisia e se vestisse de cinzento. Recordo-me de a ouvir na rádio, há um bom par de anos, num programa que conduzia já não sei em que estação, e no qual tecia considerações – espontâneas, claras, excessivas e sempre definitivas – sobre qualquer tema trazido à antena. Um vendaval.

É verdade que foi uma estrela num país que se esfumou. Recebida em Santa Apolónia, vinda do Festival da Eurovisão, por uma multidão em delírio, famosa igualmente por uma relação proibida com Henrique Mendes, dona de voz poderosa e porte superior, lindíssima mesmo quando o peso a mais tentava inutilmente diminuí-la, Simone recorda-nos, talvez, o pior de tempos infelizes que gostaríamos de esquecer. Sem sucesso, porque os velhos demónios estão de volta, não por culpa da artista, que nos traz, de idêntica forma, a herança positiva que o Portugal maligno nos deixou: o culto de valores morais, a importância do trabalho, o reconhecimento através do mérito.

Sensação estranha esta de se olhar para uma mulher que vem de tão longe, com um rosto enrugado que revela muito da sua autenticidade, e ver não uma velhinha que foi mas uma pessoa que é. Por que o país regrediu? Sem dúvida. Mas também por causa de um temperamento único. Chapeau, Simone! 

Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 17 outubro 2013. Tema de Sociedade da semana: a biografia de Simone de Oliveira