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Em criança, não tinha especial interesse por animais. Um dos meus tios domesticara um pintassilgo, que lhe saltava de um ombro para o outro e recolhia sozinho à gaiola, e isso mexia comigo. Afinal,..." /> — ler mais..

Em criança, não tinha especial interesse por animais. Um dos meus tios domesticara um pintassilgo, que lhe saltava de um ombro para o outro e recolhia sozinho à gaiola, e isso mexia comigo. Afinal,..." /> Crónicas da Sábado: uma realidade que dói - Quinta do Careca - Record

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Crónicas da Sábado: uma realidade que dói

29 Março, 2013 908 visualizações

Em criança, não tinha especial interesse por animais. Um dos meus tios domesticara um pintassilgo, que lhe saltava de um ombro para o outro e recolhia sozinho à gaiola, e isso mexia comigo. Afinal, alguém me havia explicado, creio que por causa dos leões e dos elefantes dos circos, que só se conseguia ensinar os pobrezinhos se se tivesse a chave da despensa. Ou seja, passam fome até fazerem o que se lhes manda e deixarem pôr o pé no pescoço. Não gostava disso, e ainda hoje não gosto, talvez por tentativas goradas de me domarem se terem acumulado no currículo.

Com o tempo, foi-se a compaixão e chegou a era da grande confraternização. E aos 20 e poucos anos geri mesmo uma espécie de jardim zoológico. Começou por um aquário enorme, carregado de peixinhos que se devoravam uns aos outros. Atrás deles vieram os hamsters, cujo cheiro se tornou insuportável, o que abriu alas à passarada. De periquitos a canários, com criação e tudo, passando por bicos-de-lacre e catatuas, fui somando gaiolas que se transformavam num inferno na hora da limpeza – e que interminável hora essa… Seguiram-se os pintos, os patos e mais tarde os cães, que atacavam as galinhas, e os coelhos, maníacos da comida e da reprodução. E tudo acabou nos pombos, primeiro os de leque, belíssimos, depois os cambalhota, espectaculares, e a terminar os correios, misteriosos. Ao fechar o pombal, quebrei a ligação aos animais, ou melhor dito, dediquei-me só a um.

Entretanto, prossegui o processo de mudança e hoje vivo a fase insensível. Continuo a gostar de bichinhos, até porque pretendo que a minha filha mais nova cresça no respeito pela Natureza, mas não aceito proximidade outra vez. Sofri alguns desgostos e isso bastou-me. E maior distância ainda quero manter com os fundamentalistas que cozem lagostas vivas, escolhidas diretamente dos tanques para as panelas, nos restaurantes de luxo, e entram em histeria nas ridículas campanhas de suposta defesa dos animais.

Surpreende-me que não haja, antes, movimentos de proteção das pessoas contra o drama que as atinge: dos jovens sem futuro aos idosos enganados e roubados, dos desempregados sem esperança às crianças com fome, dos insolventes que perdem a casa aos que viram destruídos todos os seus sonhos.

Os animaizinhos que inundam o Facebook, em fotos enternecedoras e bonitas mensagens de donos embevecidos, não têm culpa das misérias humanas. Mas pertencem a esse pequeno mundo que coloca num limbo a gravidade e a dimensão dos problemas. Os pratos vazios dos desesperados que já nada aguardam da vida é que são a realidade. E ela dói.

Observador, crónica publicada na edição impressa da Sábado de 27 março 2013. Tema de Sociedade da semana: o “amor” aos animais