Crónicas da Sábado: Deus chega-me
Cresci num tempo em que a Igreja Católica dominava o Estado e estendia a sua influência por grande parte da sociedade portuguesa. Ainda bastante pequeno, ia com os meus pais à celebração dominical, ora na Basílica da Estrela, onde me haviam batizado, ora na igreja do Santo Condestável, na altura a cheirar a novo, no bairro lisboeta de Campo de Ourique.
Aos 8 anos, ensinaram-me a ajudar à missa e, até aos 10, desempenhei essa tarefa na paróquia de Canas de Senhorim, sendo elogiado pelas senhoras mais devotas e pelo exigente abade Domingos. Inúmeras foram as manhãs, com temperaturas a rondar os zero graus, em que me levantei religiosamente – eis a palavra certa – às 7 horas, lavei a cara à gato e meti pernas ao caminho para, às 7 e meia em ponto, lá estar de volta do vinho e das hóstias, auxiliando também o velho abade Dourado, um quase nonagenário ainda rijo mas cego, a sair da sacristia e a subir quatro ou cinco degraus até ao altar.
À tardinha, tornava a percorrer os 600 metros que separavam a casa onde morava da igreja, para acompanhar a minha tia nas orações de fim de dia, que em certos meses do ano incluíam a reza do terço, por norma feita ao serão, na escada de pedra – ou à lareira, quando o frio apertava.
Não fiquei por aí, pois dos 13 aos 15 anos frequentei o colégio salesiano de Santo António, no Estoril, igualmente com missas matinais e orações à tarde. E foi nessa escola que primeiro me confrontei com dúvidas insanáveis: que igreja era aquela que tinha educadores sublimes, mestres da afabilidade e do conhecimento, como o inesquecível padre Germano Botelho, e ao seu lado autênticas bestas que espalhavam o terror e espancavam os alunos com uma violência inaudita? Atuariam todos segundo leis do mesmo deus? Confessar-se-iam uns aos outros? Fingiriam algum arrependimento? Que penitências receberiam para expiação de pecados sempre repetidos?
Aos 16 anos, mantinha-me temente a Deus, mas já não acreditava nos que se diziam seus representantes na Terra. E, com o tempo, passei a reconhecer-me em várias religiões e a respeitar todas. Com aquilo em que cada um acredita não se brinca. Agora, para o que não tenho paciência é para as seitas que vão proliferando pelo Mundo, aproveitando a impossibilidade de se erradicar a miséria e a ignorância. Disfarçadas de centros de solidariedade, são verdadeiros negócios que ocupam o espaço deixado livre pelas grandes religiões, como a de Roma, que em nome dos dogmas não quiseram, ou não souberam, enfrentar os desafios dos novos tempos. E hoje, como nunca, milhões de esquecidos por Deus precisam desesperadamente de auxílio – e de respostas.
Observador, crónica publicada na edição impressa da “Sábado” de 17 janeiro 2013. Tema de Sociedade da semana: a IURD