Segue texto apresentado por mim no painel “Novo acordo ortográfico, desafios e respostas”, integrado no Bibliotecando'2011, organizado em Tomar.
A língua é um objeto construído
Ferdinand de Saussure
O Record foi o primeiro jornal de circulação nacional a adotar o novo acordo ortográfico, no início de 2009, e daí para cá tornou-se objeto de curiosidade em diversos fóruns.
Não por sermos os dinossauros da língua, muito pelo contrário, mas por nos verem como uma espécie de extraterrestres que invadiram terreno sagrado.
Por que avançámos, em 2009, com a implantação de um conjunto de regras aprovadas desde 1990? Por uma razão simples: por ser da nossa natureza trabalhar com o que é novo – e já é uma concessão considerar novo o que tem agora mais de 20 anos.
Os meios de comunicação nasceram para socializar a novidade e é normal que tenham sido eles a dar o primeiro passo na universalização das regras que vão modificando a sua principal ferramenta de trabalho, a língua. Foi o Record o primeiro, podia ter sido o Expresso ou a Agência Lusa, que também já usam a nova ortografia.
Perguntam muitas vezes aos jornalistas do Record se não foi um choque a transição da antiga para a nova ortografia. Pela minha parte, nunca iludo quem quer ver satisfeita a curiosidade. É claro que foi um choque! Mas tratou-se de um choque que a poucos, e durante pouco tempo, deixou atordoados.
As chamadas consoantes mudas caíram naturalmente das palavras porque há muito estavam… mortas. Existiam convencionalmente na nossa escrita, mas a verdade é que ninguém lhes ligava, coitadas.
Tem sido mais difícil aceitar escrever os meses do calendário em minúsculas, ou o nome das estações do ano, que foram embelezando as nossas redações da escola primária, nos tempos em que Portugal não tinha fronteiras, antes possuía barreiras opacas que não deixavam passar a luz do conhecimento.
O português falado é uma língua forte, viva, e não havia razão para que a escrita continuasse agarrada a uma série de dogmas alimentados pela esquizofrenia dos “intelectualmente” superiores.
É natural que haja resistências ao novo acordo ortográfico. Sempre assim foi em todas as áreas da experiência e do conhecimento. É o uso que dele faremos que permitirá encontrar um ponto de reunião entre todos os falantes.
No Record não deixámos de apanhar um comboio que arrancava, mas também impusemos as nossas próprias condições a quem passou o bilhete. O espectador passou a espetador? O pára é para? Estranho. Tais exemplos não fizeram parte do contrato inicial e só o tempo permitiu que essas novas palavras fossem assimiladas.
Como escreveu Roland Barthes, enquanto instituição social, a língua não permite ao indivíduo criá-la ou modificá-la.
A língua exige de nós um contrato para a utilizarmos, segundo Saussure.
Diria então que a língua é um trabalho coletivo. Não vale a pena tentar obstruir aquilo que a maioria vai alterando com a utilização corrente que dela faz e o trabalho político de sistematização dessas alterações não pode ter a pretensão de impor aos falantes aquilo que eles próprios foram atualizando.
Nesta altura, a própria discussão do acordo ortográfico politicamente aprovado e que a todos se pretende impor está ultrapassada. Quem não quiser apanhar o barco fica em terra. Sempre assim foi, dificilmente deixará de o ser. Um dia outro barco passará…
Mais importantes desafios se colocam nesta altura à língua, fruto da utilização de meios digitais de transmissão de mensagens aceleradas pela voracidade do tempo.
Para esta curta comunicação, pedi à minha filha de 13 anos que simulasse uma conversação via SMS e o resultado foi este. Ilegível, mas percetível.
1 : Olá td bm?
2 : Sim e cntg?
1 : Tbm k fazes?
2 : Vou a praia de Carca e tu?
1 : Eu kero ir ao cinema mas n sei se posso
2 : Ok ads bjs
1 : Xau bjs
A abreviação das mensagens começou nas mensagens instantâneas dos telemóveis, mas basta hoje consultar os fóruns da internet para perceber que a aceleração da escrita está a criar um novo código que terá inevitavelmente os seus reflexos na língua.
Estaremos preparados para mais esta revolução que exigirá um acordo ortográfico em permanente atualização? Parece-me ser nesta altura a questão mais difícil de resolver, quando o português assume formas antes impensadas.