(Texto lido nas 15.ªs Jornadas de Comunicação da Escola Superior de Educação de Portalegre)

“Não há um jornalista, mas vários jornalistas”
Pierre Bourdieu

A discussão sobre a existência de um jornalismo desportivo ou de jornalismo, prática singular com especializações várias, foi ultrapassada pela conveniência de rotulagem, da separação em quintas, que marca a contemporaneidade. É jornalismo desportivo, quando devia ser jornalismo especializado em desporto.

Em Portugal, há notícia de ter existido um primeiro jornal especializado em 1893. Chamava-se o Velocipedista, era editado no Porto e como o próprio nome indica tinha por objeto o ciclismo, mais do que uma modalidade de competição, uma atividade na moda (Pinheiro, 2006). Daí para cá sucedeu-se a publicação de muitos títulos, contando-se na atualidade três diários e algumas publicações especializadas por modalidade: automobilismo, ciclismo, futebol, surf, vela, etc.

Vistos como profissionais de segunda categoria, os jornalistas especializados em desporto – jornalistas que faziam a coisa por desporto, portanto – passaram mais de 30 anos sem direito a carteira profissional. Criada em 1938 e definitivamente institucionalizada em 1941, a primeira carteira não abrangia os “jornalistas desportivos”, que estavam integrados no sindicato dos trabalhadores da indústria gráfica. Só em 1972, estes jornalistas que eram vistos não como trabalhadores, mas como gente que se divertia a trabalhar (visão que perdura até aos nossos dias) foram integrados sindicalmente e passaram a beneficiar das regalias da Caixa de Previdência (entretanto extinta pelo Governo Sócrates).

Não é, pois, brilhante o passado dos “jornalistas desportivos”.

É teoria corrente entre os profissionais mais antigos que o 25 de Abril foi decisivo na revelação das competências dos jornalistas que escreviam sobre desporto. A generalidade dos profissionais estivera até aí presa às redações, condicionada pelos ditames da censura, sem espaço de manobra para fazer notícias quanto mais reportagens. Com a eclosão do movimento revolucionário foram os “jornalistas desportivos” os mais aptos a andar na terreno, a reportar manifestações, comícios, sessões de esclarecimento. Por disporem da rotina de se movimentarem no exterior, enquanto os seus companheiros de profissão estavam confinados à secretária ou a viagens oficiais devidamente vigiadas pelo regime.

O “jornalismo desportivo” fez então o seu caminho, pontuado pelo sucesso das grandes tiragens e dos recordes de vendas, trabalhado por grandes profissionais, não sendo estranho o facto de três dos maiores diários portugueses generalistas serem dirigidos atualmente por jornalistas que começaram a trabalhar na área do desporto: Octávio Ribeiro (Correio da Manhã), José Leite Pereira (Jornal de Notícias) e João Marcelino (Diário de Notícias).

Na última década assistiu-se naturalmente à inversão do ranking de vendas de jornais diários, em Portugal, isto é, passaram a ser os jornais generalistas os mais vendidos, tendo os “desportivos” ocupado o segundo plano. E digo, naturalmente, porque é normal que uma generalidade de assuntos e temas (política, sociedade, economia, desporto, cultura e espetáculos) interesse a mais consumidores, do que apenas um tema, o desporto. É o reflexo de uma sociedade que cresceu, embora seja um fenómeno dificilmente entendível pelos empresários – talvez porque a ausência de estudos não os ajude, não nos ajude a todos nós, afinal, a perceber qual é o lugar dos jornais especializados em desporto no mercado da edição.

Chegamos então ao tema do “desprestígio do jornalismo desportivo”, mais interessante ainda por ser suscitado na Academia e não nas discussões da corporação, muitas vezes inquinadas por egocentrismos vesgos.
Numa das obras de referência que aborda este tema, Raymond Boyle (2006) diz que “o jornalismo desportivo é parte importante dos meios de comunicação, mas é justo reconhecer que não está entre as disciplinas mais prestigiadas”. Citação que pode ser complementada por outra mais imaginativa, da autoria de David Rowe:  “Jornalismo desportivo é o departamento de brinquedos dos meios de comunicação – isto é, localiza-se num espaço dedicado ao entretenimento e às frivolidades, em vez de se remeter às funções sérias do quarto poder” (2004).

Estamos então numa encruzilhada. Por que caminho corremos? Será o correto?

Nesta altura, parece-me secundário discutir a representatividade da identidade nos media, estudada normalmente a partir do ponto de vista do acompanhamento das seleções nacionais, em que se conclui que os jornalistas “vestem a camisola”.

Há outro nó ético mais importante para desapertar.

O desenvolvimento da imprensa e do desporto conheceu um impulso singular no séc. 19, tendo ambos conhecido níveis de massificação consideráveis.
Hoje, desporto e media não vivem um sem o outro, coabitam sob estrita dependência. Veja-se quem são hoje os principais financiadores das grandes confederações do desporto (FIFA e Comité Olímpico Internacional), quem lhes proporciona lucros milionários, e de todos os clubes profissionais, quem lhes garante as remunerações dos desportistas: as televisões. São os contratos de compra e venda dos direitos de transmissão que asseguram o negócio. E quem tem o negócio age no interesse de não o estragar, deseja promovê-lo até à exaustão, na tentativa de garantir mais e mais audiências.

“O jornalismo desportivo contribui para o aumento do apelo do desporto na televisão – conduz o desporto a novos formatos de difusão. Esta situação conflitua com os ideais de divulgação de notícias. A cobertura do desporto no âmbito do complexo desporto/media é muitas vezes usada para autopromoção, o que ajuda a aumentar o valor do produto, isto é, os direitos de transmissão” (Helland, 2007)

Como é que se faz então para proteger o nosso negócio, atacamo-lo?
É hoje claro que o “jornalismo desportivo” vive entalado entre o compromisso de dar notícias, mesmo que essa tarefa não seja muitas vezes simpática, e fazer aquilo a que pomposamente algumas pessoas chamam “promover o espetáculo”, missão paradoxalmente vedada por quem tem as estrelas sob contrato, os clubes, que reduzem a participação pública dessas figuras a declarações telecomandadas.
Mas existe outro problema contíguo a este.

“Se analisarmos a mensagem dos meios de comunicação no México e especificamente a transmissão dos valores desportivos, parece que a falta de espaço democrático dá lugar ao modelo utilitário da informação, isto é, está de acordo com os interesses do mercado” (Lara, 2007).

Em Portugal, como no México e em toda a parte, a comunicação social trabalha em função de uma quota de mercado, é uma produção feita e destinada a ser consumida. A agenda está construída de acordo com o olhar do público, futebolizada, e muitas vezes menoriza temas e protagonistas cujo valor-notícia será muito superior.

Noutra ocasião, já disse que a informação feita pelos “jornalistas desportivos” é uma “inforemoção”, que privilegia temas escolhidos segundo interesse das audiências, os protagonistas de dimensão planetária, os grandes acontecimentos e as emoções que uns e outros proporcionam. É um caminho feito pelo público e para o público. Será desprestigiante?

A pergunta parece-me ultrapassada. Nesta altura, o jornalista está de novo colocado perante um dilema de dimensão ontológica: quem sou eu, o que sou eu?

Quando os leitores são eles próprios mediadores e difusores de informação, nas redes sociais – já não são afinal simples leitores – que papel cabe aos jornalistas? Sim, quem sou eu? Nesta altura pouco me importa pois o prestígio, apenas esbracejo para sobreviver.

REFERÊNCIAS
Boyle, Raymond. (2006) Sports Journalism: Context and Issues. London: Sage
Helland, Knut. “Changing Sports, Changing Media – Mass Appeal, the Sports/Media Complex and TV Sports Rights” in Nordicom Review, Jubilee Issue 2007, pp. 105-119
Lara, Miguel Ángel. (2007) “Periodismo Deportivo: la fantasia de un oficio hecho profésion” . Texto publicado na Revista Comunicologi@: indícios y conjeturas. Publicação eletrónica do Departamento de Comunicação da Universidade Iberoamericana, Cidade do México, primeira época, número 6, Outono 2006, disponível em http://revistacomunicologia.org/index.php?option=com_content&task=view&id=158&Itemid=73
Pinheiro, Francisco. (2006) A Europa e Portugal na Imprensa Desportiva, Coimbra, Edições Minerva
Rowe, David. (2004) Sport, Culture and the Media: The Unruly Trinity, 2.ª ed., Maidenhead, Open University Press