Do triângulo das impossibilidades orçamentais ao círculo das possibilidades políticas

18/07/2014
Colocado por: Manuel Esteves

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A notícia rebentou com estrondo. Ana Drago, figura destacada do Bloco de Esquerda, bate com a porta consubstanciando uma ruptura cada vez mais evidente com a Direcção do partido. A divergência de fundo é antiga: o Bloco não deve enjeitar à partida um entendimento com o PS e eventuais responsabilidades num futuro governo nacional. Concluía-se, portanto, que o que conduzira à ruptura de um dos movimentos fundadores do Bloco de Esquerda tinha um pendor essencialmente estratégico, embora a substância ideológica ou programática não fosse clara.

 

Porém, nos últimos dias começou a despontar uma divergência programática mais explícita, que vem dar o sustento a uma ruptura que poderá dar muito que falar nas próximas eleições legislativas. Tudo começa por um triângulo das impossibilidades. Expliquemos.

 

As três impossibilidades

No início de Maio, Ricardo Paes Mamede, economista e um dos dinamizadores do Movimento 3D e do Congresso Democrático das Alternativas, lançou, no blogue Ladrões de Bicicletas, a ideia do triângulo das impossibilidades da política orçamental. Baseado num outro triângulo mais recente – o da economia política internacional de Dani Rodrik –, Paes Mamede defende que, num cenário benigno em que se concretizem as previsões macroeconómicas oficiais, o Estado português terá de escolher entre duas de três opções:

 

1)     Cumprir o tratado orçamental;

 

2)     Pagar a dívida nos termos previstos;

 

3)     Preservar o Estado Social.

 

Tendo em conta que o autor, tal como Daniel Oliveira ou Ana Drago, não abdica da defesa do Estado social – o que, em termos práticos, significa no mínimo manter a actual despesa social – coloca-se então a questão de escolher entre cumprir o tratado orçamental ou pagar a dívida tal como está previsto.

 

A linha divisória

E é aqui que começa traçar-se a linha divisória entre o novo “sujeito político” (na expressão de Daniel Oliveira) que ameaça romper na cena política nacional e o Bloco de Esquerda. Uma linha que os dirigentes bloquistas se apressaram a vincar. Tal como sublinhou a coordenadora do BE, Catarina Martins, esta semana, o programa de esquerda, do qual o BE não abdica, tem “três pontos claros: reestruturação da dívida, rejeição do tratado orçamental e protecção do Estado Social”. Francisco Louça, por seu lado, procurou demonstrar, em textos publicados no facebook, como Daniel Oliveira e os dissidentes se preparam para deixar cair a rejeição do tratado orçamental.

 

Francisco Louçã atribui intenções a Daniel Oliveira e Ana Drago que os próprios nunca assumiram de forma clara. O comentador político tem preferido centrar-se na impossibilidade de cumprir os três objectivos: pagar a dívida, cumprir o tratado e preservar o Estado social. Qual dos objectivos deixa cair ou a forma como o deixa cair ou adapta, é algo que não está fechado e cuja resposta varia consoante as figuras que compõem este outro triângulo – o da corrente Manifesto, movimento 3D e Congresso Democrático das Alternativas. Trata-se, na opinião destes, de um jogo de geometria variável. Uma reestruturação profunda poderia coadunar-se com o cumprimento do tratado orçamental. Mas se o Estado português não quiser ser ambicioso na revisão do serviço de pagamento da dívida, então cumprir o tratado orçamental torna-se virtualmente impossível.

 

No fundo, e voltando à imagem geométrica, é na dimensão dos lados dos triângulos que se pode entrever o que será o posicionamento deste “sujeito político” que agora desponta. E ele há triângulos para todos os gostos: equiláteros, isósceles, escalenos,…

 

Então, e o que pensa o PS?

A metáfora do triângulo parece encaixar como uma luva nas várias vertentes do tema da convergência das esquerdas. Nesta discussão, para lá do triângulo dos três movimentos que podem vir a constituir o futuro “sujeito político”, há outro triângulo maior: o Bloco, a nova plataforma política e provavelmente eleitoral e, claro está, o PS.

 

No actual contexto, falar em PS é mais complexo porque obriga a falar no PS de Seguro e no PS de Costa. No entanto, as diferenças programáticas não são relevantes. No que toca ao tratado orçamental, António Costa classificou-o como “o último erro que os socialistas cometeram”. Mas quando confrontado sobre se teria actuado de forma diferente, Costa admite que “provavelmente, na altura […] não havia outra solução se não aprovar o tratado orçamental”. E concluiu: “agora que deve ser uma prioridade a revisão do tratado orçamental, isso é absolutamente essencial”.

 

Já na altura em que decidiu aprovar o tratado, António José Seguro não encontrou justificação melhor do que afirmar que “o PS é um partido responsável e europeu”. E se o secretário-geral do PS tem sido desde então parco em palavras sobre este tema, o seu núcleo duro assume que o tratado não é para levar à letra. Brilhante Dias disse, aliás, em declarações ao semanário Sol, que o tratado “permite a aplicação de instrumentos anti-cíclicos”, numa leitura que vai ao encontro do deputado e apoiante de António Costa, Pedro Marques. Na Europa, o discurso entre as hostes socialistas afina claramente por este diapasão e mesmo no seio do centro-direita, há cada vez mais vozes a pedir flexibilidade na aplicação do tratado.

 

Em relação à reestruturação da dívida, a visão turva-se bastante. Se há dirigentes e deputados do PS que a defendem abertamente (e esses estão do lado de António Costa, sendo Pedro Nuno Santos o exemplo mais proeminente), é evidente que tanto Costa como Seguro mexem no assunto com pinças. Qualquer um assume a necessidade de uma renegociação dos termos de pagamento, mas ambos fogem do detalhe como o diabo da cruz.

 

Do triângulo ao círculo

Independentemente das posições abertas ou fechadas, assumidas ou implícitas, parece evidente que este triângulo das impossibilidades tem o efeito de abrir possibilidades no diálogo entre as esquerdas e o centro- esquerda.

 

É uma estratégia inversa à do BE. Ao partido interessa sublinhar três princípios simultâneos: o da reestruturação da dívida, o da rejeição do tratado orçamental e o da defesa do Estado social para bloquear, à partida, qualquer tipo de negociação governativa com o PS; aos dissidentes, pelo contrário, interessa criar um triângulo de lados flexíveis, que abra espaço a uma negociação com o PS.

 

No fundo, este triângulo de impossibilidades orçamentais vem interferir no círculo das possibilidades políticas. Pode alargá-lo, criando condições para uma plataforma de entendimento à esquerda que se reflicta em futuras soluções governativas. Ou pode mirrá-lo ainda mais, enfraquecendo o projecto de convergência à esquerda defendido pelo Bloco. Neste último caso, o triângulo das impossibilidades redundaria numa quadratura do círculo.


 

Manuel Esteves