O Negócios publicou hoje um trabalho sobre a possibilidade de regresso de alguns dos “vícios” que caracterizaram o crescimento da economia portuguesa no período pré-crise. Perante o aumento do investimento em construção, o disparar do consumo privado e do crédito às famílias, assim como o avanço das importações, estará Portugal a regressar ao seu crescimento tradicional? Contactados por nós, três economistas explicaram por que não estão preocupados. Seguem em baixo as suas respostas completas às nossas perguntas.
1 – Até que ponto estas tendências nos devem preocupar?
Rui Bernardes Serra, economista do Departamento de Estudos do Montepio: Creio que não deve ser motivo de preocupação, justamente num contexto em que a recuperação da procura interna está a ser realizada a par de uma tendência de subida das exportações.
Paula Carvalho, economista-chefe do BPI: No meu entender, estas tendências não são preocupantes na medida em que se trata de reposição de níveis mais normais de actividade depois de uma acentuada retracção. Repare-se que estas tendências ocorrem com excedente externo e com descida em simultâneo dos níveis de endividamento de particulares e empresas. Estas são as duas variáveis mais relevantes e que evoluem no sentido de correcção dos desequilíbrios anteriores. Por outro lado, a taxa de poupança das famílias tem registado praticamente estabilização.
2 – Podem ser “ressaltos”, justificados por alguns destes indicadores estarem em mínimos?
Filipe Garcia, economista do IMF: O que temos vindo a observar nos últimos semestres é uma normalização do comportamento da economia portuguesa. Ou seja, não seria normal continuar com o recuo do consumo privado, com o praticamente desaparecimento da construção e com o investimento empresarial quase parado. Da mesma forma, também não é normal ter o crédito parado como aconteceu em 2011/12, tendo a situação melhorado primeiro nas empresas e depois nos particulares. Portanto, o crescimento de todas essas componentes reflete a normalização do comportamento da economia, incluindo o do crédito.
Paula Carvalho: Sim, claramente. Por exemplo, as vendas de automóveis estão ainda em valores absolutos mínimos. As vendas de veículos de passageiros (anuais) ainda estão abaixo dos níveis de 2011. Da mesma forma, o Investimento atingiu um mínimo de cerca de 15% do PIB, insuficiente para repor o stock de capital. A recuperação da actividade de construção é importante para a retoma do investimento, na medida em que pode reflectir, por exemplo, construção de novas unidades produtivas (a taxa de utilização da capacidade instalada na industria tem vindo a aumentar, sinalizando necessidade de reposição da capacidade, por exemplo).
Rui Bernardes Serra: É exactamente essa a questão: muitos desses indicadores desceram para mínimos de vários anos e não só é normal, como desejável, que as principais variáveis macroeconómicas recuperem dos efeitos das duas últimas recessões. Numa economia em crescimento, é normal que as variáveis macroeconómicas possam sucessivamente ir atingindo máximos históricos. É o caso, por exemplo, da economia alemã, em que o PIB se encontra acima dos níveis pré crise de 2008. Em Portugal o PIB do 1.º trimestre de 2015 ainda se encontrava 7.5% acima do máximo histórico do 1.º trimestre de 2008. Se olharmos para o consumo privado, vemos que está 7.4% abaixo do pico do 4.º trimestre de 2010 (a componente de bens duradouros está 34.4% abaixo), enquanto o investimento em capital fixo está 39.6% abaixo do pico do 1.º trimestre de 2001 e o investimento em construção 57.3%.
Ou seja, é normal que as componentes mais voláteis e que mais foram afectadas pela crise possam ser as que apresentam agora crescimentos mais elevados. Note-se que ao nível dos bens duradouros, as vendas de automóveis foram das mais afectadas em resultado de um conjunto de fatores durante a crise, dos quais se destacam: i) o facto de, no que diz respeito a renovações de frotas, não serem bem essenciais e que, dessa forma, as decisões de compra poderem ser adiadas ou mesmo canceladas; ii) da disponibilidade de crédito ter diminuído. Entretanto, a idade do parque automóvel foi aumentando, bem como as condições do mercado de crédito, que melhoraram, permitindo alimentar alguma procura reprimida durante a recessão.
Refira-se que a redução da taxa de desemprego deverá continuar a ser uma preocupação máxima nos próximos anos e cujo sucesso deverá depender de um mix de políticas de apoio à procura interna e de promoção da internacionalização. A procura interna é absolutamente necessária para fazer descer a taxa de desemprego. Programas de revitalização urbana podem ter o condão de estimular a procura interna e o emprego e melhorar a competitividade do país naquele que é o nosso principal “produto” de exportação: o turismo.
Apesar dos constrangimentos orçamentais, Portugal deve ter o objectivo de superar o crescimento da Zona Euro nos próximos cinco anos e tal não deve ser feito apenas com base nas exportações, mas também na recuperação da procura interna.
3 – É possível inferir que ainda estamos longe da tal transformação estrutural da economia de que tanto se fala?
Filipe Garcia: O facto de balança comercial estar (levemente) superavitária não deve ser desvalorizado, sendo um excelente resultado para uma economia periférica, completamente aberta e que tem de importar uma quantidade muito significativa de energia, nomeadamente combustíveis fósseis e energia eléctrica. A queda nos preços do petróleo, o degrau que se desceu em termos de consumo e sobretudo a melhoria da procura externa dos nossos melhores clientes teve uma grande importância e, o que se vê agora com o caso de Angola, destaca que continuamos muito expostos à conjuntura internacional. Mas é excelente e destacar esse processo, que tem características estruturais.
Paula Carvalho: Parece-me que essa transformação tem vindo a ocorrer, repare-se o aumento do peso das exportações no PIB, o alcance de saldos excedentários externos, saldo orçamental primário positivo, etc. Todavia, é positivo que essa transformação se faça sem a asfixia da procura interna. Em suma, parece-me que se está perante um processo virtuoso.
Rui Bernardes Serra: Ainda não chegamos ao destino, mas alguns passos importantes foram dados. Ao nível do sector público, o consumo público chegou a representar 21% em 2009 e ficou no 1.º trimestre abaixo dos 19.5% do PIB. Já ao nível externo, a correcção dos desequilíbrios externos foi uma das características mais marcantes do processo de ajustamento da economia portuguesa, notável num contexto de câmbios fixos.
Quando a troika entrou em Portugal, tínhamos um elevado desequilíbrio externo (em 2010 o défice da balança corrente foi de 10.1% do PIB), que foi completamente anulado em 2013, ao observar-se um excedente de 1.4% do PIB e o maior desde, pelo menos, 1960. Em 2014 observou-se um novo excedente da balança corrente (+ 0.6%), o 2.º desde 1969 (+0.1%). Para 2015 perspectivamos um novo excedente e superior ao do ano anterior, de 1.1%. O peso das exportações no PIB em Portugal subiu de 31.5% em 2010 para 41% em 2014, mas continua a existir um potencial de crescimento, já que permanece inferior aos 54% na Áustria, 82% na Holanda, 86% na Bélgica e 118% na Irlanda.
A subida das exportações deverá ser baseada nos ganhos de competitividade da economia portuguesa: os custos unitários do trabalho têm vindo a diminuir em Portugal, contrastando nos últimos anos com alguns países. A produtividade por trabalhador tem vindo a aumentar e a um ritmo superior ao apresentado por alguns países. Por outro lado, desde 2008 que a inflação excluindo alterações fiscais tem sido em Portugal inferior à média da Zona Euro, permitindo recuperar a competitividade perdida na sequência da adesão ao Euro. Do ponto de vista mais qualitativo, refira-se que Portugal subiu cinco posições no Índice de Liberdade Económica de 2015. Segundo este índice elaborado anualmente pela The Heritage Foundation e o The Wall Street Journal, a pontuação de Portugal subiu 1.8 pontos face a 2015 para 65.3 pontos, acima da média mundial, que é de 60.4 pontos. Ao longo dos últimos cinco anos, ganhou 1.3 pontos e subiu cinco posições no ranking. As melhorias em cinco dos 10 factores foram lideradas pela flexibilização da legislação laboral e da criação de negócios. A condicionar uma maior subida da Liberdade Económica tem estado o indicador relativo à despesa pública, que reflectiu uma subida da dívida pública.
Uma nota adicional sobre outros perigos que enfrenta a economia portuguesa num futuro próximo.
Filipe Garcia: O que é que verdadeiramente me preocupa no médio/longo prazo: é que Portugal tem importado muitos capitais, com esse movimento a intensificar-se nos últimos anos. Uma das faces visíveis é o aumento do endividamento do Estado, mas há outro. Há cada vez menos empresas de grande dimensão em mãos nacionais quando se fala em alienações de empresas ou parte das empresas, da PT à EDP, da Fidelidade ao Novo Banco, da TAP ao Oceanário, quase nunca se fala de novos proprietários portugueses. E, se é verdade que numa economia aberta o capital não tem pátria, o reflexo é que os lucros/dividendos dessas empresas será enviado para fora do país e provavelmente não será aqui reinvestido, isto para não se falar do tema dos centros de decisão.
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