A austeridade é necessária para Portugal sair da crise?

02/03/2011
Colocado por: massamonetaria

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Com ou sem intervenção internacional, mas provavelmente de forma mais musculada se a UE e o FMI vierem mesmo a emprestar dinheiro ao País, a austeridade parece estar para ficar. Portugal não está só e as virtudes e defeitos desta estratégia estão a ser debatidas um pouco por todo o mundo ocidental.

 

O Negócios lançou o debate a partir das posições contrárias de João Rodrigues e Álvaro Santos Pereira que apresentaram na sexta-feira passada os seus argumentos iniciais a favor e contra uma politica de austeridade. Desde então e até terça-feira à noite quase 1.500 pessoas consultaram as posições dos economistas, perto de mil leitores votaram no barómetro e uma dezena comentou. Até agora, à pergunta lançada, 74% dos votantes responderam “Sim”.

 

Álvaro Santos Pereira é professor na Universidade Simon Fraser no Canadá, e João Rodrigues, é investigador da Universidade de Coimbra (CES). Ambos são bloguers prolíferos: Santos Pereira no Desmitos e João Rodrigues nos Ladrões de Bicicletas.

 

Hoje é dia de contraargumentos.  Neles, João Rodrigues e Álvaro Santos Pereira aprofundam a sua visão sobre a necessidade de uma política de austeridade. Os dois economistas respondem aos argumentos do “adversários” e a reptos de alguns leitores, evidenciando visões aparentemente inconciliáveis para a saída da crise.

 

A votação e os comentários estão abertos até quinta-feira às 17 horas. Sexta-feira faremos o balanço deste Frente-a-Frente. Bem vindo.

 

Contra-argumentos (quarta-feira, dia 02 Março)

 

João Rodrigues: “Abriu-se a torneira da austeridade…”

 

1. A leitura da defesa da austeridade feita por Álvaro Santos Pereira (ASP) suscita-me três questões:

 

a) Por que é que se tenta discutir os nossos problemas fingindo que é possível compreendê-los e resolvê-los sem considerar e alterar esta perversa configuração europeia?

Do regime de crescimento económico anémico, que pressiona as finanças públicas, à inserção económica dependente, que se traduz num elevado endividamento ao exterior, uma parte fundamental dos nossos problemas chama-se euro disfuncional. Trata-se de uma moeda sem governo económico com a mesma escala, capaz de instituir políticas de combate à crise e de relançamento, em especial nas suas mal apetrechadas periferias. Neste contexto europeu, e com este ou outro governo de liberal submissão aos interesses dos “nossos parceiros”, estamos condenados a um definhamento socioeconómico que só agravará o problema da dívida.   

 

b) Por que é que quem apoia a austeridade, nunca apoia as políticas de austeridade realmente existentes?

 Portugal imita, em 2011, a Grécia e a Irlanda: a austeridade já não é a conta gotas. A torneira abriu-se e a história repete-se. Os economistas pré-keynesianos ganharam politicamente em toda a linha. O refúgio na retórica vaga da “gordura do Estado” é uma fuga à ética da responsabilidade. É evidente que nenhum espírito isento discordará do combate ao desperdício, aos grupos económicos que parasitam o Estado e fogem às suas responsabilidades fiscais ou ao cancro da economia informal. No entanto, as politicas de austeridade exigidas pelos “mercados” e pelas “estúpidas” regras dos pactos europeus implicam em todo o lado fazer cortes abruptos, injustos socialmente e contraproducentes economicamente.

 

c) Por que é que a lógica intrínseca e as consequências inevitáveis das políticas de austeridade não são enunciadas?

Estamos já em plena política à FMI, mesmo que sem uma das variáveis, a desvalorização cambial, que tornou no passado estas políticas menos destrutivas. Neste contexto, vários estudos, incluindo do próprio FMI, reconhecem que a austeridade é sempre recessiva. Os cortes nas despesas sociais e nos serviços públicos, os cortes salariais na função pública e o aumento do desemprego, que se segue à compressão da procura, aumentam o medo na economia, levando à aceitação de cortes salariais no sector privado e, com as alterações regressivas da legislação laboral associadas, a uma diminuição do poder da esmagadora maioria dos trabalhadores. Esta é a inconfessada economia política da austeridade. 

 

2. Neste quadro político e intelectual, consolida-se um capitalismo cada vez mais medíocre, viciado na baixa dos salários, sem freios e contrapoderes colectivos, com trabalhadores desmotivados e com poucas razões para apostar na qualificação. Um capitalismo sem incentivos para atacar o problema da qualidade do nosso capital e concentrado em sectores de baixa produtividade. A preocupação com a competitividade não passa por aqui. E a preocupação com o financiamento da economia portuguesa também não. Ao afundar a economia, a austeridade perpetua um círculo vicioso implicitamente reconhecido.

 

3. Uma economia decente implica dar prioridade ao combate ao desemprego, evitando uma economia sem pressão salarial, com mercado interno comprimido e com fraca posição nos mercados externos, e proteger os serviços públicos e a segurança social. Uma economia decente implica também políticas industriais e de investimento robustas. Tudo isto é contrário à lógica das políticas de austeridade.

 

 

Álvaro Santos Pereira: “Fomos nós que lançámos o papão da austeridade sobre nós e não os mercados”

 

1. Em 2011, Portugal terá a maior dívida pública dos últimos 160 anos e a maior dívida externa desde 1892, quando declarámos uma bancarrota parcial. Porém, estes indicadores nem sequer reflectem a verdadeira realidade nacional, pois a dívida pública oficial não inclui nem as dívidas das empresas públicas (mais 24% do PIB), nem as parcerias público-privadas (PPPs), cujos encargos ascendem a quase 30% do PIB. Se adicionarmos tudo, chegamos a uma dívida pública total que tem um valor actualizado entre os 120% e os 130% do PIB. Por outras palavras, a nossa situação orçamental é muito aflitiva. E é exactamente por isso que a austeridade é inevitável.

 

2. É verdade, como diz o João Rodrigues, que a crise financeira internacional agravou os desequilíbrios orçamentais. Porém, não é certo que a austeridade tenha sido desenhada só para apaziguar os mercados. A austeridade surgiu porque os desequilíbrios das nossas contas públicas não são sustentáveis. Ou seja, a austeridade é o preço que estamos a pagar pela irresponsabilidade dos nossos governos e não porque os mercados nos querem fazer mal. Todos os países sofreram os efeitos da crise internacional. Todos viram descer as receitas fiscais, e todos aumentaram as despesas públicas. Contudo, os únicos países que estão hoje numa situação aflitiva já tinham em 2008 uma situação orçamental extremamente frágil (como a Grécia e Portugal), ou tiveram bolhas imobiliárias que rebentaram e desencadearam enormes crises bancárias (como a Irlanda e, provavelmente, a Espanha). Isto é, fomos nós que lançámos o papão da austeridade sobre nós e não os mercados.

 

3. E não se pense que o investimento público é o salvador ou o contra-ponto à austeridade. Não é. Se o investimento público tivesse qualquer poder mágico para fazer retomar a economia, já há muito que estaríamos a viver um milagre económico de proporções asiáticas. Na última década, as obras públicas (e pseudo-públicas) totalizaram quase 30% do nosso PIB. E qual foi o resultado deste investimento? Uma década de estagnação, a maior taxa de desemprego dos últimos 100 anos, e a segunda maior vaga emigratória da nossa História. Por isso, acabemos de uma vez por todas com a fábula do investimento público, pois não é que está a solução.

 

4. Dito isto, a austeridade não pode, de facto, ser uma solução permanente. Que medidas é que podemos então tomar para vencer a crise das contas públicas? Do lado das receitas, um novo agravamento fiscal será um erro tremendo. No entanto, o Estado tem outros meios para aumentar as suas receitas. Ainda há muito por onde privatizar e há mais de 10 mil terrenos e imóveis públicos, muitos dos quais poderão ser alienados.

 

Do lado das despesas há muito por onde cortar, incluindo:

 

a) 10% dos consumos intermédios do Estado

 

b) 10%-15% das despesas de todas as entidades e organismos públicos não essenciais.

 

c) 10% e 20% dos encargos gerais do Estado (i.e., governo, Assembleia da República, etc.)

 

d) fim das ajudas e créditos fiscais a muitas das centenas de fundações que o Estado apoia.

 

e) uma real reforma do Estado que leve à fusão e extinção entre 30% e 50% de todas as entidades e organismos públicos.

 

 

5. Ou seja, o ajustamento tem de ser feito à custa do emagrecimento do Estado e não à custa dos contribuintes e dos funcionários públicos.

 

6. E se, mesmo assim, todas estas estratégias não chegarem, há sempre a possibilidade de termos reestruturar as nossas dívidas. Existiriam inconvenientes de curto prazo associados com essa decisão. Mas, se não tivermos alternativa…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Argumentos iniciais (sexta-feira, dia 25 Fevereiro)

 

Álvaro Santos Pereira: “A austeridade é necessária mas não é suficiente”

 

1. Portugal enfrenta três grandes e difíceis crises: uma crise das finanças públicas, uma crise de competitividade, e uma gravíssima crise de endividamento externo. Todas estas crises estão relacionadas, mas são de tal modo profundas que os nossos parceiros europeus e os mercados internacionais pensam que não conseguiremos melhorar as nossas finanças públicas sem uma continuação da política de austeridade.

 

2. Ainda assim, será a austeridade mesmo necessária para Portugal sair da crise? Sim e não. Ou seja, a austeridade é necessária, mas não é suficiente. A austeridade é necessária para combater os desequilíbrios das contas públicas e o endividamento ao exterior. Sem um combate sem tréguas ao nosso elevado défice orçamental e à nossa dívida pública explosiva, não é difícil imaginar um cenário em que o financiamento da economia nacional poderia ser posto em causa, o que, por sua vez, daria azo a uma crise económica e financeira bem maior do que actual. Por isso, a austeridade é, de facto, necessária para evitar que tal aconteça.

 

3. O problema não é a austeridade, mas a maneira como nós a temos implementado. Primeiro, andamos a promover uma austeridade a conta gotas, que só tem prejudicado a economia nacional. Segundo, a austeridade devia ser feita do lado das despesas e não através do aumento de impostos. Ou seja, a austeridade devia ser feita cortando na gordura do Estado, nos consumos intermédios, nas despesas dos milhares de entidades e organismos públicos que constituem a nossa Administração Pública, e nos apoios que o Estado concede a determinados grupos económicos e a toda a espécie de grupos de interesse. Isto é, a austeridade devia ser feita contra o despesismo do Estado e não contra os funcionários públicos ou contra os contribuintes portugueses.

 

4. Um problema adicional é que, apesar da austeridade, continua a não haver consolidação orçamental e as despesas públicas continuam a crescer com pouco controlo. Não há igualmente uma estratégia definida para o combate da nossa dívida pública crescentemente explosiva. Não há um real plano de contenção da dívida das  empresas públicas (que já totaliza mais de 24% do PIB). Não há uma estratégia plurianual abrangente para o desastre financeiro anunciado que são as parcerias público-privadas (que nos irão custar mais de 2,5 mil milhões de euros por ano a partir de 2013). E não há qualquer tentativa de evitar o recurso a desorçamentações descaradas e à contabilidade criativa. Em suma, a nossa política de finanças públicas está num desnorte total. Com um governo assim, quem é que precisa de especuladores para nos atirar para os braços do FMI? E é por isso que é absolutamente vital mudarmos de rumo o quanto antes.

 

5. Todavia, e como já disse, a austeridade não chega. Uma política de austeridade que não leve em consideração os nossos problemas de competitividade está condenada ao fracasso. Porquê? Porque não é difícil imaginar um cenário em que a recessão criada pela nossa austeridade a conta-gotas provoque uma diminuição drástica das receitas fiscais, o que só agravará ainda mais os desequilíbrios das contas públicas, aumentando, mais uma vez, a tentação de introduzirmos ainda mais austeridade. Por outras palavras, para que a austeridade seja bem sucedida, é fundamental que um combate implacável ao despesismo do Estado seja contrabalançado por políticas que ajudem a economia a recuperar da crise e da estagnação. Sem isso, e sem retoma económica não há austeridade que nos valha.

 

 

João Rodrigues: “Austeridade permanente? Não, obrigado “

 

1. Depois de uma quebra de 2,7%, em 2009, o PIB português registou uma recuperação, em 2010, de 1,4%, apenas possível porque Portugal só se juntou tardiamente ao clube da austeridade liderado pela Grécia e pela Irlanda.

 

2. A Grande Recessão, iniciada num sistema financeiro liberalizado e disfuncional, não se transformou na Grande Depressão devido ao peso do Estado e dos seus estabilizadores automáticos (sobretudo a quebra das receitas), mas o seu lastro é visível no desperdício de uma taxa de desemprego que atinge os dois dígitos.

 

3. Não satisfeitos pela factura apresentada aos contribuintes pelos efeitos dos desvarios do sistema financeiro, os mesmos mercados pediram, em 2010, um segundo pagamento através do aumento das taxas de juro da dívida pública, em especial nos países periféricos. A política económica de austeridade, desenhada para aplacar a pressão dos mercados, já fracassou neste intento.

 

4. Tirando a predação realizada por interesses privados, visível por exemplo nas ruinosas parcerias público-privadas, a situação das finanças públicas depende fundamentalmente do andamento da economia e por isso a sua situação continuará a prazo periclitante, apesar do esforço para aumentar impostos indirectos regressivos e para cortar nos salários e nas despesas sociais.

 

5. Qualquer que seja o modelo de aplicação e a distribuição do seu fardo, o resultado da austeridade é a recessão e a continuação do aumento do desemprego, sem perspectiva de crescimento futuro. As políticas de austeridade fazem do trabalho, dos salários directos e indirectos, a principal variável de ajustamento à crise. Assim não se criam os empregos de que necessitamos porque não se resolvem os dois problemas que travam o investimento: o acesso ao crédito e as expectativas de evolução da procura.

 

6. As políticas de austeridade esquecem adicionalmente que é impossível um esforço simultâneo de poupança pública e privada sem uma contracção da economia, particularmente num contexto de défice externo estrutural, reflexo de uma integração económica dependente do país e que se traduziu na perda de instrumentos de política, sem que instrumentos de compensação robustos tivessem sido criados à escala europeia.

 

7. Neste contexto, as políticas de austeridade, que também são uma imposição de um centro europeu apostado em defender os seus bancos, só podem ser contrariadas por uma aliança dos PIGS. Estes devem usar a ameaça de uma reestruturação da dívida por si organizada como instrumento de pressão para que se gere uma solução europeia para um problema que é europeu porque partilhamos moeda e mercado.

 

8. Assim, a transformação do fundo europeu, criado em Maio, num pacote de estímulo económico, o que pressuporia baixar as taxas de juro e acabar com condicionalismos que destroem as economias, seria um primeiro passo. A consolidação orçamental só se pode realizar num contexto de crescimento e isso pressupõe proteger os países de mercados financeiros por reformar. Isto também implicaria a prazo criar dívida pública europeia e aumentar o orçamento europeu, o que corrigiria o estrutural desequilíbrio no governo económico do euro.

 

9. Adicionalmente, as periferias devem reconquistar instrumentos de política industrial e comercial para debelarem os défices permanentes nas suas relações com o exterior. Isto poderia passar por permitir a suspensão temporária das exigentes regras do mercado interno europeu por forma a possibilitar uma politica de crédito e outros apoios direccionados aos sectores inovadores nacionais e alguma protecção face às importações. Sem uma alternativa à austeridade, o destino do país é claro: um empobrecimento desigual.