Fonte: Chris Ratcliffe/Bloomberg
A Europa chegou finalmente o acordo sobre a união bancária europeia, o que é considerado por muitos como o maior passo de integração financeira (e política) na Zona Euro desde a criação da moeda única.
Em “sete notas sobre união bancária” no final do ano passado explicámos os dos principais instrumentos então em discussão. Vale a pena voltar ao tema agora que as negociações terminaram com um conjunto de perguntas e respostas.
Qual o objectivo da união bancária?
A ideia central em torno da união bancária é quebrar a relação entre o risco dos países e risco dos bancos, que algum economistas classificam de “ciclo diabólico”. O objectivo é evitar que as desgraças do soberano levem os bancos ao chão (como por exemplo aconteceu na Grécia) ou que os bancos possam forçar um País a ser resgatado (como experimentou a Irlanda).
A dimensão dos bancos europeus – alguns deles com valores de activos superiores à própria economia “mãe” – torna inevitável que, para quebrar esse ciclo, a responsabilidade em caso de falhanço de uma instituição financeira tenha de ser partilhada entre as várias economias da Zona Euro. Esta é uma das grandes lições da crise dos últimos anos.
Ora, se todos os Estados-membros se responsabilizam pelos bancos dos outros, então a supervisão das instituições também deverá ser partilhada, assim como a capacidade de decidir quando e como deve fechar ou ser recapitalizada uma instituição. E este é o grande passo dado no último ano: daqui em diante teremos o supervisor francês com capacidade para deitar um olho e decidir sobre um banco alemão, e vice versa. É um desenvolvimento notável.
De que é feita uma união bancária?
Uma união bancária precisa de três componentes: um fundo comum de garantia de depósitos (para garantir que não há corridas aos bancos), um mecanismo comum de supervisão, e um mecanismo comum de liquidação de bancos que tenha a capacidade de financiar a reestruturação ou a liquidação de um banco.
A união bancária da Zona Euro está completa?
Não. Ficou por acordar um fundo comum de garantia de depósitos, que não se sabe quando avançará.
O que foi decidido?
Neste momento a união bancária europeia é constituída, com diferentes graus de profundidade, pelas duas outras componentes. Assim teremos:
a. Mecanismo Comum de Supervisão: (SSM, liderado pelo BCE) que tem a cargo a supervisão prudencial dos principais bancos da Zona Euro e já está a funcionar desde final do ano passado. É no exercício da sua função de supervisor que o BCE está a proceder a uma análise dos activos da banca europeia e os sujeitará, juntamente com a autoridade bancária europeia, a testes de stress, cujos resultados serão conhecidos em Novembro.
Caberá ao SSM identificar e sinalizar a necessidade de intervir no banco e será a ele que recorrerão bancos com dificuldades. O SSM comunicará a sua avaliação ao Mecanismo Comum de Liquidação.
b1. Mecanismo Comum de Liquidação: (SRM, também nova instituição) terá como missão avaliar e decidir a reestruturação de instituições financeiras com problemas de solvabilidade e proporá a melhor forma de o fazer. Entra em funções no início de 2015.
O Conselho Directivo é composto por um presidente, quatro vogais, representantes das autoridades nacionais de liquidação de bancos, e representantes do BCE e Comissão. È aqui que se tomarão as grandes decisões sobre o futuro dos bancos europeus.
Mas para ter efectiva capacidade para mandar fechar ou reestruturar um banco, convém que exista dinheiro para lidar com as consequências. É para isso que serve o Fundo Comum de Liquidação.
b2. Fundo Comum de Resolução (FCL): trata-se de um seguro a nível europeu financiado pela própria indústria até 55 mil milhões de euros (cerca de 1% do total de depósitos garantidos na Zona Euro). Levará dez anos até atingir o total da capacidade financeira esperada – momento que deixarão de existir fundos nacionais de liquidação de bancos. Até lá:
– A mutualização de responsabilidades acontecerá gradualmente: dois anos depois de entrar em vigor, em 2017, 60% dos custos de uma liquidação serão partilhados, e o valor aumenta em 10% ao ano, até atingir os 100% ao fim de oito anos.
– O fundo poderá endividar-se no mercado contra garantias das contribuições futuras dos bancos;
Mais detalhes sobre o SRM e o FCR podem ser encontrados aqui.
Mas então o que acontece se um banco tiver problemas?
O plano é mais ou menos assim:
1. Em primeiro lugar, os bancos terão de procurar soluções de mercado para as suas necessidades financeiras, e avançar o “bail-in” de accionistas, detentores de obrigações juniores e seniores e depositantes acima de 100 mil euros – embora estes fiquem numa posição preferencial face a outros credores.
2. Caso o dinheiro não chegue, será a vez do Fundo Comum de Resolução financiar a recapitalização ou reestruturação da instituição.
3. Caso ainda assim seja necessário mais dinheiro (o que pode acontecer com um mega-banco), o Estado-membro onde opera a instituição será chamado à recapitalização (embora dada a supervisão partilhada se adivinhem grandes debates políticos nesta frente);
4. Só depois destas etapas todas, e no caso da recapitalização pública colocar em risco a solvência do país, é que se admite a recapitalização através do Mecanismo Europeu de Estabilidade. Esta é uma novidade no arsenal anti-crise da Europa, mas na prática a sua utilização será muito limitada e poderá ser directa e indirecta.
4.a. Os governos serão sempre responsáveis pela injecção de dinheiro até ser atingido um rácio de capital “core tier I” de 4,5%. Caso o País não consiga financiar por si este limite, poderá pedir assistência ao ESM – que emprestará directamente ao Estado – financiando uma recapitalização indirecta;
4.b. Para elevar o rácio de capital acima dos 4,5% até aos limites exigidos pelas regras europeias de supervisão prudencial, o ESM poderá então recapitalizar directamente os bancos. Nestes casos o o Estado-membro deverá contribuir com um montante que pode chegar a 20% do capital público injectado, e o ESM tornar-se-á accionista do banco;
Quais são as principais criticas à solução encontrada?
1. A inexistência de um fundo de garantia de depósitos mantém o risco nas respectivas capitais;
2. Segundo o Financial Times, mais de 100 pessoas terão uma palavra a dizer sobre a decisão de liquidação de um banco, criando um processo burocrático para uma decisão que pode ter de ser tomada em horas;
3. Os governos nacionais mantêm algum poder sobre a decisão de liquidação de um banco (ainda não é claro quanto exactamente) – o que poderá criar confusão em momentos de crise;
4. O mecanismo de resolução e os fundo de resolução não se aplica aos bancos que estão fora da supervisão directa do BCE (apenas cerca de 130 estão);
5. 55 mil milhões de euros não chega para lidar com grandes bancos. Em caso de problemas graves em baços, parte do esforço mantém-se no orçamento nacional e só depois deste estar esgotado (até a um limite de sustentabilidade que se desconhece) é que serão usados fundos comuns europeus;
6. Mais uma vez foi usado um acordo intergovernamental (tal como para a criação do ESM) para constituir o SRM e o FRC, o que os coloca fora do escrutínio do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia. Na prática não são “instituições europeias”
E os elogios?
1. O dinheiro dos contribuintes fica decisivamente mais protegido do que antes da crise;
2. É grande passo na mutualização de responsabilidades financeiras com bancos, abre a porta a um Fundo Comum de Garantia de Depósitos e até à mutualização de dívida;
3. Trata-se de avanço político impensável há anos e prova o elevado compromisso político europeu para com a Zona Euro.
4. 55 mil milhões chega para muitos bancos médios e até para sistemas bancários de países inteiros. Em caso de grandes crises sistémicas, os governos e os respectivos tesouros serão chamados, mas isso é normal, também acontece nos EUA ou no Reino Unido;
Elementos adicionais para perceber melhor a União Bancária:
– Documentos oficiais divulgados pela Comissão Europeia
– Jacob Kierkgaard no Peterson Institute for Internacional Economics analisa recente acordo
– Daniel Gros, no Center for Economic Policy Studies elogia o resultado
– Wolfgang Munchau no Financial Times diz que união servirá para pouco
– Jean Pisani-Ferry, André Sapir, Nicolas Véron and Guntram B. Wolff , no Bruegel em 2012 discutiam o que deveriam ser os elementos estruturantes de uma união bancária;
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