Pode o BCE fazer mais por Portugal?

03/07/2014
Colocado por: Rui Peres Jorge
Mari Draghi

Mario Draghi

Há um mês o BCE apresentou um pacote de estímulo monetário para a Zona Euro para afastar o risco de deflação, estimular a retoma e reduzir a fragmentação financeira na região, isto é, baixar os juros para empresas viáveis na periferia, nomeadamente em Portugal.

 

Entre as várias medidas apresentadas destacam-se quatro: taxa de juro negativa nos depósitos dos bancos no BCE; empréstimos a quatro anos à banca europeia contra a garantia de cedência de crédito à economia; a aceleração de um plano de compra de activos (créditos) titularizados; e o anúncio de que o BCE poderá avançar com um plano de compra de activos em larga escala se estas medidas não forçaram um aumento da inflação esperada.

 

Passado um mês, vale a pena juntar alguns elementos para tentar responder a duas questões:

 

1. Serão as medidas do BCE suficientes para puxar pela inflação e pela retoma da Zona Euro?

 

2. Poderia o BCE fazer mais por Portugal?

 

Para a primeira pergunta não há uma resposta segura. É esperar e ver, diz o próprio BCE. Já quanto à segunda, são várias as análises que apontam para que mais pudesse ser feito em Frankfurt por Lisboa. Ou pelo menos, mais depressa.

 

 

Ajuda começar pelas mensagens centrais de um conjunto de entrevistas que publicámos no Negócios em antecipação à reunião do BCE e que contextualizam o debate e a situação na Zona Euro.

 

  • Adam Posen, presidente do Peterson Institute for International Economics, defende a urgência do banco central avançar com um plano de compra de activos na linha do anunciado pelo BCE, centrado em dívida titularizada das PME da periferia (ABS, Asset Backed Securities). Em Outubro já seria tarde, defendeu.

 

 

 

1. Vamos então por partes. Serão as medidas do BCE suficientes para puxarem pela inflação na região?

 

A resposta honesta é que ninguém sabe. Mesmo entre analistas próximos do BCE ninguém arrisca sobre o futuro (veja-se por exemplo o 50/50 de um dos ex-responsáveis pela implementação da política monetária em Frankfurt). O FMI, já depois da reunião do BCE, pediu mais apoios ao banco central, nomeadamente um plano de compra de activos em larga escala (isto é, obrigações do tesouro como fizeram EUA e Reino Unido) para puxar pela inflação, facilitar a redução da dívida na Europa e fortalecer a retoma. O BCE, embora recusando avançar nesse sentido, respondeu que o poderá fazer caso as medidas agora aplicadas não tenham os efeitos pretendidos.

 

Os mais críticos do BCE são mais cépticos. E aqui o argumento central é o de que os bancos não estão com um problema de falta de acesso a crédito, estão sim com um problema de falta de procura de crédito, que resulta da fragilidade da retoma e da incerteza quanto ao futuro, como defende, por exemplo, João Galamba, deputado socialista, num artigo recente. Ora ao actuar sobre o acesso dos bancos aos crédito e não sobre a procura na economia, o impacto das decisões do BCE será limitado, defende esta corrente.

 

2. Mas se não há uma resposta evidente à primeira pergunta, a resposta à segunda questão parece aponta para que o BCE pudesse fazer mais por Portugal.

 

Por um lado, vários economistas, incluindo do FMI e ex-responsáveis do BCE consideram que as medidas anunciadas poderiam ser mais ambiciosas na tentativa de aumentar a inflação na região. Este resultado seria particularmente importante para Portugal:

  • A inflação média mais alta na Zona Euro, permitiria inflação mais alta em Portugal, sem prejudicar ganhos de competitividade preço face aos outros países (onde os preços cresceriam ainda mais depressa).

 

  • Por outro lado, a inflação mais elevada alivia o peso real das dívidas, o que favorece uma economia altamente endividada como a nacional.

Por outro lado, dentro das medidas ao dispor do BCE (a crítica de João Galamba, por exemplo, aponta um caminho que exige medidas dificilmente admissíveis para o actual mandato do banco central, como financiamento directo de despesa pública), a compra pelo BCE de créditos titularizados de empresas é vista como uma das armas mais importantes para reestabelecer fluxos de crédito razoáveis a empresas saudáveis na periferia (como salientam as três entrevistas iniciais)

 

E aqui, embora o BCE tenha caminhado no sentido certo, não há qualquer compromisso com um prazo para avançar e a informação sobre como poderá funcionar esta aquisição de activos titualizados (que implicitamente baixa a taxa de juro dos créditos às empresas, visto que os bancos, como sabem que existe um mercado para estes activos, estarão em princípio dispostos a emprestar mais barato). Ora, isto é pouco para a urgência que se vive num país onde, segundo o próprio presidente do BCE, um terço das empresas enfrenta dificuldades de acesso a crédito, um máximo na Zona Euro.

 

3. Para terminar, vale a pena uma última pergunta: porque é que a compras de dívida das das empresas pelo banco central está a receber tanta atenção?

 

Aqui entramos no debate em torno de uma das transformações mais importantes na condução da política monetária que resultam da crise, e que tentei chamar à atenção num artigo de opinião recente, no qual evidenciava que os bancos centrais estão a entrar numa nova era em que:

 

1. não se limitam a garantir a estabilidade preços, mas assumem um papel activo a garantir a estabilidade financeira (veja-se por exemplo todo o debate em torno da capacidade do Reino Unido combater uma potencial bolha imobiliária mantendo juros baixos);

2. são compelidos a “identificar as artérias do sistema financeiro que estão entupidas e actuar directamente sobre elas, garantindo que há financiamento a preços razoáveis para projectos viáveis”, mesmo que isso signifique mexer no preços de activos, transferindo implicitamente riqueza de uns sector da economia para outros;

 

A melhor síntese desta nova era é talvez dada por Brunnermeier na mesma entrevista ao Negócios:

 

Defende que os bancos centrais devem definir as suas intervenções de acordo com o que identificam estrangular o crescimento: pode ser o financiamento do Estado, pode ser o sector privado, e dentro deles empresas, ou famílias. Isto não é conceder demasiado poder redistributivo aos bancos centrais?

[A alternativa é não fazer nada] Se ignorar os problemas, então o choque negativo será amplificado e prejudicará um sector em particular, normalmente o que está altamente endividado. Isso significa que estará implicitamente a transferir riqueza do sector em dificuldades para os outros. O que eu proponho é que se trave esta redistribuição, identificando onde está o problema e resolvendo-o. Deixe-me dar-lhe um exemplo: a Fed nunca assumirá, mas o que de facto está a fazer é que, tendo identificado um problema no mercado imobiliário, e que é preciso aumentar os preços, implementou um programa de “quantitative easing” com que compram dívida imobiliária titularizada – mas não obrigações de empresas. E porquê: porque o sector empresarial não está com problemas.

 

Esta nova forma de actuar é uma revolução na banca central. Entre outros elementos, reconhece:

 

1. Um papel redistributivo à política monetária que ela tem necessariamente, mas que é muitas vezes esquecido;

 

2. Assume que para conseguir conduzir a política monetária numa economia financeirizada e em crise, o banco central tem de actuar não só sobre o tipo de moeda sobre a qual estamos habituados a pensar (moeda e notas que dependem essencialmente da emissão pelo banco central), mas também sobre o que os economistas chama de “moeda privada”, ou seja, o dinheiro que é criado pelo próprio sistema financeiro quando empresta (gerando depósitos) ou quando cria activos como a dívida titularizada  (cujo mercado o banco central pode criar ou incentivar se achar necessário)

 

(Nos EUA caminha-se mesmo para a criação de um mecanismo de controlo na Fed sobre a banca sombra, que multiplica por muitas vezes a moeda em circulação, como nota este interessante artigo no Financial Times)

 

Desde a crise que a banca central deixou de ser aborrecida … e tudo indica que assim continuará a ser por muitos anos.

 

Rui Peres Jorge


1 Comentário em “Pode o BCE fazer mais por Portugal?

  1. Jose diz:

    Tradicionalmente o banco central lidava com as necessidades de liquidez agregada. Na atual crise, tornou-se necessário lidar com a distribuição da liquidez (entre países, entre empresas, etc.) e, por isso, são necessários novos instrumentos de política.

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