O novo plano do BCE para salvar o euro (e Portugal?)

16/08/2012
Colocado por: Rui Peres Jorge

Sinal de emergência numa cabine telefónica ao pé da sede do BCE em Frankfurt Fonte: Hannelore Foerster/Bloomberg

 

Exceptionally high risk premia are observed in government bond prices in several countries and financial fragmentation hinders the effective working of monetary policy. Risk premia that are related to fears of the reversibility of the euro are unacceptable, and they need to be addressed in a fundamental manner. The euro is irreversible
 

There is no going back to the Lira or the Drachma or to any other currency. It is pointless to bet against the euro. It is pointless to go short on the euro. That was the message. It is pointless because the euro will stay and it is irreversible'

 

Mario Draghi, 26 de Julho e 02 de Agosto  

No início do mês Mario Draghi abriu a porta a uma nova fase da união monetária e financeira: a de credor de último recurso de Governos sempre que os mercados desafiarem a irreversibilidade do euro, impossibilitando a transmissão da política monetária e exigindo juros inaceitáveis a países membros da Zona Euro.

 

A forma como tudo acontecerá não é ainda clara, é polémica e implicará muito debate e negociações nas próximas semanas. Recuperamos e enquadramos alguma da muita informação disponível sobre o novo plano do BCE para salvar o euro.

1. O BCE comprará essencialmente dívida de muito curto prazo?

 

As maturidades dos títulos que o BCE irá comprar não são ainda claras: ninguém arrisca mais de três anos e até um ano parece ser o prazo mais provável. Comprar essencialmente obrigações de curto prazo tem várias vantagens para o BCE: 1) consegue  argumentar que está a usar instrumentos mais próximos da política monetária (as taxas de juro decididas em Frankfurt dizem apenas respeito ao mercado monetária); 2) é eficaz pois a actuação no curto prazo suaviza as dificuldades de financiamento da banca (e logo das empresas que se financiam junto dela); 3) a autoridade monetária terá mais poder para impor condições aos países intervencionados – que sem o BCE entrarão em incumprimento rapidamente; 4) finalmente, o risco de incumprimento a que se expõe é menor;

 

Não é claro como será tratada a provável concentração das emissões dos países visados nas maturidades intervencionadas pelo BCE (e por isso mais baratas). Estando longe de ser uma mutualização directa das dívidas, esta proposta abre a porta a que se caminhe em direcção a propostas como as dos bilhetes do Tesouro europeus.

 

2. Como será colocado um limite aos juros?

 

Ao comprar títulos no mercado, o BCE força a uma subida do preço das obrigações, e, logo, a uma descida das respectivas taxas de juro. Ao actuar no curto prazo, a autoridade monetária terá impactos directos apenas nas maturidades mais curtas mas, se a actuação for credível, poderá também baixar os juros ao longo da curva de rendimentos.

 

Uma das principais questões é a de saber se haverá um limite numérico a partir do qual o BCE passa a intervir no mercado. Numa nota enviada a clientes a semana passada, os economistas do Royal Bank of Scotland opõem-se a um tecto explícito: 

If the scheme sets an implicit yield cap, that cap should move in response to changes in stance of monetary policy (and perhaps perceived credit and liquidity risk).

A equipa do RBS opõe-se a um limite numérico explícito mas, caso ele exista, então defende que é essencial que seja móvel para reagir pelo menos a alterações nas taxas de juro. A ideia de um limite fixo, defendem, tem ainda a desvantagem deste poder ser testado pelo mercado, o que recorda “a experiência humilhante” de Inglaterra no início da década de 90 quando tentou manter a libra dentro da banda de flutuação do Mecanismo de Taxas de Câmbio.

 

Um hipótese seria que fixar um “spread” fixo sobre os títulos de referência europeus, isto é, as obrigações alemãs.

(Actualização a 20 de Agosto: Der Spiegel garante que esta opção é mesmo a mais provável)

 

3. Qual o objectivo económico final? 

 

Como fica evidente das palavras do Mario Draghi, os diferenciais de taxas de juro entre países da Zona Euro não são aceitáveis numa união monetária: por um lado, representam um risco de fragmentação do euro que não pode ser admitido; por outro, esse risco é exacerbado exactamente pelos elevados diferenciais de juros (que funcionam como que uma profecia auto-realizável). O problema não é apenas o impacto no custo de financiamento dos soberanos (e logo da sustentabilidade das suas dívidas), mas também a forma como esse factor afecta o custo de financiamento no mercado de bancos e empresas dos países em dificuldades.

 

O objectivo último da intervenção do BCE é assim terminar com a fragmentação das condições financeiras e da política monetária na Zona Euro, como frisam Joshua McCallum e Gianluca Moretti, da UBS:

 

The ECB has recently acknowledged the need to fix market fragmentation and to restore the correct functioning of the transmission mechanism from monetary policy through to the Eurozone economy, which has not been functioning properly for a long time. Despite monetary policy rates being at historical lows, borrowing costs for firms are not. Spillovers from the sovereign market to the banking sector have made bank market funding more and more expensive. As a result, bank lending rates to private sectors in the periphery (see chart 1) have been constantly rising in the last three years. This has caused a credit crunch in those countries, which is bad for growth which in turn makes fiscal adjustments more difficult.uctive, but politically difficult to avoid given the political resistance, especially from the core countries

 

 

4. A condicionalidade ao abrigo dos fundos europeus de emergência é central?

 

O presidente do BCE vincou que a condicionalidade imposta pelo poder político será um dos elementos centrais de qualquer intervenção do BCE. Há três razões essenciais para assim ser: por um lado, o BCE não tem legitimidade democrática para impor por si essa condicionalidade; por outro lado, será difícil à autoridade monetária intervir sem o apoio dos países do Norte, o qual depende em muito da confiança que depositarem nas reformas estruturais no Sul; finalmente, a experiência do ano passado com Berlusconi ainda não foi esquecida (o ex-primeiro ministro italiano voltou atrás com as promessas de austeridade em que o BCE se baseou para intervir no mercado aliviando os juros italianos).

 

Joshua McCallum e Gianluca Moretti, da UBS, consideram mesmo que a preocupação com o risco moral – ou seja, o risco de países que recebam assistência poderem suavizar as suas reformas – é uma das principais diferenças face ao programa de compra de títulos iniciado o ano passado (SMP):

 

It seems, however, that it will differ from the existing Securities Markets Programme (SMP), which was established at the height of the crisis, in several ways. Most importantly, the ECB will only be buying the bonds of those countries that are already within a European Financial Stability Facility or European Stability Mechanism (EFSF/ESM) programme. The concern about the previous SMP was that ECB intervention to relieve market pressure could actually make governments less likely to take difficult measures – a classic case of moral hazard.

 

5. Que limites à intervenção e quais as pressões inflacionistas?

 

O BCE terá de conseguir convencer os investidores de que tem capacidade de intervenção sem limites. Só assim é que a sua intervenção será credível e, afinal, foi o próprio presidente Draghi que afirmou “confiem em mim, vai chegar”. Além disso, como notam os economistas do Royal Bank of Scotland numa nota recente, a credibilidade é a chave para minimizar o volume de aquisições de títulos (um ponto já argumentado de forma convincente por Paul De Grauwe há um ano):

Unlimited capacity and crowding in private investors: the market must believe that the Governing Council is willing and able to buy in size if it wants to have a significant and lasting impact on yields; comments by members of the Governing Council are encouraging on this score. In a perfect world, if the scheme is super-credible then the Governing Council may not have to buy bonds.

Dado o estado avançado da crise, o mais provável é que o BCE tenha mesmo de comprar volumes consideráveis de títulos. Nesse caso, qual é o limite do BCE?

 

Um banco central tem capacidade de praticamente infinita de criação de moeda, ficando limitado apenas pela sua credibilidade e funções. No caso do BCE, as compras em grande quantidade de títulos poderão alimentar o risco de inflação futura, ameaçando a missão nº1 de Frankfurt: garantir a estabilidade de preços no médio prazo, isto é, inflação abaixo ou igual a 2%.

 

Uma opção para minimizar o risco inflacionista passa por esterilizar as compras de obrigações – o que o BCE fez sempre com os poucos mais de 200 mil milhões de euros de obrigações que comprou ao abrigo do seu programa de compra de títulos (SMP). A esterilização significa que cada euro injectado através das compras de títulos, o banco central retira um euro de circulação através da gestão de empréstimos e depósitos que concede e recebe dos bancos.

6. O BCE continuará a ser “sénior” face a credores privados?

 

Um dos problemas com o SMP foi o BCE assumir-se como “sénior” face aos outros compradores de dívida. Isto é, em caso de “default” o BCE recebe sempre antes dos restantes credores. Tal implica que quanto mais dívida o BCE comprar, maior o risco para os credores privados em caso de reestruturação. Nos casos de países com dificuldades e com risco de incumprimento, a  actuação do banco central podia provocar um aumento de juros, pois o risco para os detentores de dívida aumenta à medida que proporção de dívida sénior aumenta. O problema foi admitido por Draghi, que garantiu que vai resolvido, mas ainda não é claro como poderá ser resolvido, como explicam McCallum e Moretti:

 

the ECB is also looking for a way to solve the issue of its senior creditor status. When it buys bonds it automatically makes the other bond holders subordinated, so that those bond holders will lose all their money before the ECB faces any losses. This could have significant repercussions – not least possible downgrades of now-subordinated debt by rating agencies. This is counterproductive, but politically difficult to avoid given the political resistance, especially from the core countries

 

6. Portugal beneficiará das compras do BCE?

 

O presidente da República portuguesa defendeu recentemente que, uma vez que o BCE está disposto a comprar títulos, e Portugal está num programa de ajustamento, então a autoridade monetária bem poderia começar já a adquirir títulos do Governo português. Não é ainda claro se tal acontecerá. Mas acontecendo, que vantagens poderia ter?

 

Por um lado, Portugal está num programa de ajustamento da troika com financiamento garantido por UE e FMI por mais um ano, pelo que uma intervenção do BCE não é neste momento decisiva.  

 

Por outro lado, o País continua a financiar-se no mercado no curto prazo, pelo que ter a autoridade monetária apenas a adquirir títulos de Espanha ou Itália é uma discriminação difícil de sustentar do ponto de vista político e económico. Qualquer ajuda a baixar juros seria por isso bem vinda.

 

Mas aqui coloca-se então uma questão importante: porque é que o banco central da Zona Euro se permite a discriminar entre países? Como é que justifica a  compra de títulos de Itália e não da Alemanha, por exemplo? Martin Feldstein, no Project Syndicate, argumentou recentemente que o BCE deveria comprar sempre um cabaz de títulos:

While any central bank must be able to conduct open-market operations to manage liquidity in financial markets, selective purchases of individual country bonds that bear high interest rates because of current and past fiscal profligacy is both unnecessary and dangerous. A better rule for the ECB would be to conduct open-market operations by buying and selling a “neutral basket” of sovereign bonds, with each country’s share in the basket determined by its share in the ECB’s capital.

 

A posição de Feldstein a favor de um “cabaz neutral” (um tema já bastante discutido há uns meses) pode ser rebatida argumentado que, uma vez que não existem títulos de dívida comuns (as famosas e imaginárias eurobonds), será mais eficiente actuar ao nível dos títulos de dívida dos países com problemas, desde que se afaste o risco moral, o que o BCE procurou fazer vincando que qualquer compra fica condicional aos países recorrerem ao FEEF/MEE. Neste contexto, distinguir ainda entre países intervencionados ao abrigo do FEEF/MEE parece mais difícil de sustentar.

 

Finalmente, há uma dimensão muito pragmática da importância de uma eventual intervenção do BCE em Portugal. Segundo o programa de ajustamento nacional, Portugal tem de regressar aos mercados de dívida pública de longo prazo em Setembro de 2013. Uma intervenção do BCE no mercado secundário poderia facilitar esse regresso, uma conclusão que conduz necessariamente à pergunta: será o BCE é “a ponte” de que todos os responsáveis europeus falam para garantir que países como Irlanda e Portugal conseguem algum tipo de regresso ao mercado nas datas previstas (caso os mercados continuem a não reconhecer importância às reformas implementadas)?

Rui Peres Jorge