Nota editor: Miguel Morgado, de “O Cachimbo de Magritte”, aceitou o convite do massa monetária e, até ao final de Fevereiro, publicará os seus posts também nesta casa.
O meu problema com a narrativa que os nossos socialistas adoptaram com o fervor dos prosélitos, a de que a crise que vivemos actualmente é, apenas e só, uma crise sistémica do euro, não incide nas múltiplas “falhas” agora diagnosticadas à “arquitectura” do euro. Que a arquitectura do “euro”, quando analisada pela perspectiva da teoria das “zonas monetárias óptimas” e de outras teorias adjacentes, tinha falhas é óbvio. Mas foi sempre óbvio. O facto foi assinalado vezes sem conta antes mesmo da adopção do euro.
Contesto outras coisas na dita narrativa. Em primeiro lugar, a de servir de guarda-chuva mais do que conveniente ao governo, ao PS e a todos os seus cheer-leaders que assim esfregam as mãos de contentamento por se livrarem das suas responsabilidades pelo desastre. Uns, por ignorância. Outros, por vontade de acreditar no alibi. Outros por pura e simples má-fé. Portugal tem problemas de ordem económica que são da sua exclusiva responsabilidade, e que se devem a decisões políticas tomadas por pessoas concretas. Uma certa maneira de fazer as coisas em Portugal conduziu a múltiplas ineficiências, a deficientes afectações de recursos e a autênticas aberrações; esvaziou as instituições e desmoralizou a população. Não há “crise sistémica” do euro que nos livre desta mais elementar responsabilidade.
Além disso, desconfio desta narrativa que supõe às terças-feiras que os mercados são o produto da mais perfeita arbitrariedade e irracionalidade. Às quartas-feiras já se diz que tudo pode ser resumido a uma gigantesca conspiração. Já se ouviu de tudo, desde a especulação americana para destruir o bonzinho, solidário e humanitário euro – tese subscrita pelo Dr. Mário Soares; até uma sinistra marosca alemã denunciada por um jornalista português, numa televisão portuguesa, em resultado de uma conversa com o Ministro das Finanças grego, que consistia em convencer os gregos a deixar de produzir fosse o que fosse – incluindo os “serviços” – que os eles, os alemães, “enviariam turistas”. E quando finalmente chegamos à quinta-feira, os mercados recuperam a sua inteligência e perspicácia quando se trata de avaliar a espiral dívida/deflação, que nunca denotam quando está em causa a espiral de pura acumulação de dívida.
Por último, o que muitos estão a preparar com esta narrativa da “crise sistémica do euro” é uma centralização e federalização europeia nas costas dos vários eleitorados nacionais, afirmando a concentração de poder e o esvaziamento das soberanias nacionais como uma necessidade absoluta, sem a qual tudo ruirá. Tudo: a Europa, Portugal, os direitos humanos.
Diz-se que o euro tem uma solução “política”. Talvez. Ele já é, com todas as suas deficiências e carências, o fruto de uma decisão “política”. Agora, queremos uma outra “decisão política”. Uma daquelas que, tal como se dizia em tempos da derradeira revolução, porá um fim a todas as decisões políticas.
Miguel Morgado, O Cachimbo de Magritte
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