Rogoff tentou justificar-se ontem à noite. Fonte: Jerome Favre/Bloomberg
Bom, esta é daquelas que muda tudo ou não vai mudar nada. Pelos vistos, pode não ser assim tão óbvio que uma dívida pública mais elevada tem um impacto negativo no crescimento económico de um país. Num estudo publicado segunda-feira, três académicos da Universidade de Massachusetts vieram colocar um gigantesco ponto de interrogação sobre as conclusões do paper de Carmen Reinhardt e Kenneth Rogoff, “Growth in a Time of Debt” (2010), questionando, não só as premissas utilizadas por ambos, como apontando falhas básicas em cálculos de Excel.
“Por que raio é que isto é importante?”. O estudo de Reinhardt e Rogoff (RR) é uma das principais obras de referência no que diz respeito à discussão em torno da necessidade de estabilização do endividamento público, sendo citada frequentemente para defender processos agressivos de consolidação orçamental. A sua principal conclusão é: economias com um rácio de dívida pública superior a 90% do PIB vêem o seu crescimento económico penalizado. Uma conclusão que serviu como pilar académico para os esforços de austeridade que arrancaram na Europa em 2010, por exemplo.
O paper de RR já foi várias vezes criticado, mas as suas fragilidades nunca tinham sido postas a nu desta forma. Thomas Herndon, Michael Ash e Robert Pollin replicaram o estudo de RR, utilizando exactamente a mesma base de dados e concluem que “erros de código [Excel], exclusão selectiva de dados disponíveis e uma ponderação pouco convencional de estatísticas levam a erros sérios que representam de forma imprecisa a relação entre dívida pública e crescimento do PIB entre 20 economias avançadas no período pós-guerra”. Os três autores concluem que “o crescimento com rácios de dívida pública/PIB acima de 90% não são dramaticamente diferentes” de situações em que o endividamento público é mais baixo.
Depois de terem tentado – sem sucesso – replicar os resultados de RR com os dados públicos disponíveis, Herndon, Ash e Pollin pediram directamente a RR a base de dados que estes usaram no estudo de 2010. Ao analisar esses dados, os três investigadores concluem que existem três grandes problemas com o paper de RR. Por um lado, são excluídos da análise anos em que dívidas acima de 90% conviveram com crescimentos económicos sólidos (Austrália (1946-1950), Nova Zelândia (1946-1949) e Canadá (1946-1950)). Outro problema é que RR dão o mesmo peso a observações com durações diferentes. Por exemplo, o Reino Unido teve um crescimento médio de 2,4% durante 19 anos com dívida superior a 90%. A Nova Zelândia teve uma recessão de 7,6% num só ano em que a dívida estava acima desse valor. RR dão o mesmo peso a ambos, apesar de o período de observação ser 19 vezes maior no primeiro.
Mas a cereja no topo do bolo é, sem dúvida, o código de Excel… “Um erro de código na folha de Excel de RR exclui totalmente cinco países, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá e Dinamarca da análise. RR fizeram a média das células nas linhas 30 a 44, em vez das linhas 30 a 49”, escrevem os três autores. Mike Konczal, que escreve este belo resumo, admite que duvidou da existência desse erro de código e pediu a Herndon-Ash-Pollin para lhe enviarem o Excel. Eles mandaram-lhe este “print-screen”, onde é possível observar que faltam algumas células na análise.
A média calculada na linha 51 exclui cinco linhas da base de dados.
Eliminando este erro de código, incluindo todos os países da base de dados e considerando cada ano acima de 90% com o mesmo peso (critério também discutível), Herndon-Ash-Pollin concluem portanto que “a média de crescimento real do PIB para países com um rácio de dívida/PIB acima de 90% é, na realidade, 2,2% e não -0,1%” como concluíam RR.
O Twitter dos jornalistas de economia explodiu. A argumentação dos investigadores de Massachusetts ajusta-se perfeitamente às teorias daqueles que sempre defenderam não existir uma causalidade directa entre dívida alta e crescimento mais fraco, defendendo até que a relação é inversa: isto é, é o crescimento mais débil leva a uma acumulação de dívida.
“Alguns de nós nunca compraram [a teoria de RR], argumentando que a correlação observada entre dívida e crescimento reflecte uma causalidade inversa. Mas mesmo eu nunca sonhei que uma grande parte do resultado alegado pudesse resultar de nada mais profundo do que má aritmética”, escrevia o Nobel Paul Krugman, poucas horas após o estudo ter começado a circular (depois acrescentaria isto). “Se for verdade, isto é embaraçoso para RR. Mas os verdadeiros culpados aqui são as pessoas que aproveitaram um resultado de investigação dúbio, não sabendo nada sobre a investigação, porque ela dizia aquilo que eles queriam ouvir.”
Escreve Mike Konczal: “Se este erro acabar por ter sido um engano de RR, bom, podemos apenas esperar que os futuros historiadores escrevam que um dos principais argumentos empíricos que providenciou as bases intelectuais para a movimentação mundial para austeridade no início de 2010 foi baseada em alguém acidentalmente não ter actualizado uma fórmula de Excel.”
Carmen Reinhardt e Kenneth Rogoff responderiam terça-feira à noite. As suas principais linhas de argumentação são que sempre estiveram mais preocupados com mostrar uma associação e não com provar a existência de uma causalidade entre dívida e crescimento; destacam também que os resultados medianos (e não médios) são semelhantes aos que publicaram em 2010. Sobre o erro de código de Excel? Nem uma palavra. Economistas e analistas classificaram a resposta como algo desapontante.
O que vai então mudar? Provavelmente, pouco ou nada. Entre as autoridades europeias, por exemplo, o consenso político é relativamente alargado em relação aos esforços de austeridade e o barómetro alemão continua a apontar nessa direcção. No entanto, foi um bom início de semana para os keynesianos que acusam os esforços de austeridade de serem inúteis e o debate académico acabou de ganhar uma nova ruga importante.
Actualização (17h30): Carmen Reinhardt e Kenneth Rogoff publicaram hoje uma resposta mais longa e completa.
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