Perante uma inflação homóloga de 0,8% na região, o cenário de quatro anos afastado da sua meta de inflação “abaixo, mas próximo de 2%”, e uma taxa de desemprego nos 12% – quase o dobro da norte-americana – o BCE optou ontem por não tomar qualquer medidas de estímulo monetário adicional. O argumento central do BCE é o de que está em curso apenas um processo natural de ajustamento de preços no rescaldo de uma das maiores crises financeiras da história, o qual tem sido influenciado por alguns factores externos temporários, pelo que não se justifica uma actuação mais enérgica.
As opções em Frankfurt contrariam no entanto um número cada vez mais visível de especialistas que vêm avisando para os riscos quer de deflação, quer de inflação muito baixa por um longo período de tempo na Zona Euro. Ontem o tema voltou a marcar a reunião mensal do BCE. Draghi teve de responder a um “post” publicado esta semana por economistas do FMI – incluindo o director do departamento Europeu – que defendiam a urgência do BCE actuar, e explicar a uma jornalista japonesa, que acompanha o Banco de Japão há 15 anos, que lições é que o BCE tira deflação nipónica e porque que não actua de forma preventiva contra risco de deflação.
Dada a importância desta questão, em especial para os países da chamada periferia da Zona Euro, vale a pena recuperar argumentos e contra-argumentos.
Há deflação na Europa?
BCE e FMI concordam que não. Mario Draghi tem repetidamente defendido que não existe uma queda continua e generalizada de preços na Zona Euro. Segundo as contas do FMI, hoje só 3 três países da Zona Euro têm inflação negativa (contra 12 países em 2009) e apenas 20% dos bens registam recuos nos seus preços, contra cerca de 30% em 2009.
Há risco de deflação na Europa?
É aqui que as divergêcias começam. O BCE atribuiu a inflação baixa na Europa a alguns factores externos temporários e à pouca procura agregada na economia decorrente da desalavancagem em curso. Ontem, Draghi avançou que a inflação da Zona Euro está cerca de 0,4 a 0,5 pontos mais baixa devido à valorização do euro face ao dólar no último ano; e sublinhou também o contributo acrescido dos preços de bens energéticos para a evolução dos preços. Além disso, garantiu logo na abertura da conferência de imprensa, “as expectativas de inflação estão firmemente ancoradas e em linha com a estabilidade de preços no médio prazo”.
No post publicado esta semana o FMI discorda e diz que as expectativas de inflação a dois a quatro anos estão em queda e que isso pode afectar a inflação actual:
If by expected future inflation we mean longer term rates, then the answer is no: expected inflation 5-10 years out is flat and so could not possibly be the cause of falling current inflation. But if we consider 2-4 year ahead expected inflation, the horizon relevant for many spending decisions and wage negotiations, these are falling and could be affecting current inflation. That said, actual inflation stabilized in February at 0.8%.
Podemos confiar nas expectativas de inflação?
Ontem a jornalista japonesa perguntou a Draghi porque confia tanto nas medidas de expectativas de inflação – a medida central usada pelos bancos centrais para avaliarem se na economia se acredita que vão entregar o seu objectivo de inflação? Segundo a jornalista que acompanha a deflação japonesa há mais de uma década, as expectativas são difíceis de medir, e no Japão, no início da deflação, o banco central continuava a ver as expectativas ancoradas – tal como o BCE agora – embora os preços já estivessem em queda e a deflação a instalar-se.
Mario Draghi reconheceu que as expectativas de inflação são efectivamente dificeis de medir, mas que essa é a medida que o BCE usa desde sempre, com sucesso, “tanto quando a inflação estava alta, como quando estava baixa”, respondeu.
O FMI não concorda com a confiança de Frankfurt e sublinha que nos três episódios deflacionistas do Japão as expectativas de longo prazo também deixavam o banco central descansado. Por isso, defende-se em Washington, é importante levar também em contas as expectativas de curto e médio prazo: é por aí que a deflação começa a entranhar-se na economia e aí há sinais na Europa que merecem atenção.
Long-term inflation expectations on the eve of three deflationary episodes in Japan were also reassuringly positive. But nearer-term expectations turned more pessimistic, feeding into spending and wage decisions and delivering actual deflation. Long-term expectations adjusted too little and too slowly to be a useful guide to monetary policy.
A Zona Euro pode transformar-se no Japão?
A verdade é que ninguém sabe muito bem, embora o BCE esteja munido de muitos argumentos para garantir que assim não é. Ontem, Mario Draghi voltou a repeti-los:
1) A proporção de bens com quedas de preços na Zona Euro é muito menor do que a registada no Japão no final dos anos 90 e início da década passada;
2) As expectativas de inflação continuam ancoradas o que, diz Draghi, “em determinado momento” deixou de acontecer no Japão;
3) As reformas financeiras e a limpeza de balanços dos bancos (nomeadamente a avaliação de activos que será feita pelo BCE ainda este ano) foi muito mais rápida na Zona Euro do que no Japão;
4) A valorização do euro e da queda do preço dos produtos energéticos têm afectado de forma relevante os preços da Zona Euro, o que não se passou no Japão na viragem do século.
5) A política monetária da Zona Euro nesta altura já é mais expansionista do que a do Japão antes da deflação se instalar.
Os críticos de Frankfurt argumetam que o BCE está a brincar com o fogo, e que, dados os riscos de deflação e a dificuldade de a combater, não faz sentido hesitar em actuar já com mais empenho. Até porque, acrescentam, a inflação baixa é má para o ajustamento da Zona Euro. O FMI faz um bom resumo dos argumentos mais usados:
One needs to act forcefully before deflation sets in. (…) the Bank of Japan was relatively slow in lowering policy rates and ratcheting up base money. In the event, it had to resort to ever-increasing stimulus once deflation set in Two decades on, that effort is still ongoing.
Very low inflation may benefit important segments of the population, notably net savers. But in the current context of widespread indebtedness problems, it is working to the detriment of recovery in the euro area, especially in the more fragile countries, where it is thwarting efforts to reduce debt, regain competitiveness and tackle unemployment.
E a inflação baixa é má porquê?
A inflação baixa gera essencialmente três problemas no actual contexto:
1) Inflação abaixo da que implícita nos contratos de dívida já firmado faz aumentar a taxa de juro real desse contratos, dificultando o serviço da dívida. Paul de Grauwe apresentou este argumento de forma clara no início do ano;
2) Em princípio, a inflação baixa/deflação que se regista na periferia deveria permitir aumentos de preços inferiores ao registado no centro da Europa e assim garantir ganhos de competitividade. Mas se a inflação for baixa em toda a Europa não se registarão tais ganhos, dificultando o ajustamento na região;
3) Finalmente, a inflação alta permite às empresas ajustarem os custos laborais apenas através de congelamento salarial. Isto porque com inflação e congelamentos salariais, os preços sobem e logo as receitas também, mas os salários não. Com inflação baixa o ajustamento torna-se mais difícil, o que dificulta a redução do desemprego nos países mais afectados.
O que pode o BCE fazer?
Com taxas de juro próximas de zero, as medidas mais eficazes para conseguir gerar inflação são avançar com um programa de compra de activos (do sector privado e do sector público) volumoso, como fizeram o Banco de Inglaterra e a Fed, ou com novos empréstimos de dinheiro a banca. No FMI e no Bruegel, um “think tank” de Bruxelas, defendem uma ou ambas. No Peterson Institute for Internacional Economics (PIIE) há quem defenda compras de activos mais selectivas e centradas nos países em deflação.
O BCE reconhece que essas seriam formas eficientes de actuar e o seu economista-chefe chegou a admitir essa hipótese no final do ano passado. No entanto, os governadores têm optado pela inacção, considerando que a taxa de juro próxima de zero é, por agora, um instrumento suficiente, para um ajustamento natural dos preços. A contribuir para as decisões em Frankfurt estarão também, por um lado, o facto do BCE pretender manter pressão alta sobre os governos nas reformas que defende; e por outro, de em Frankfurt se querer terminar a sua avaliação aos balanços da banca antes de conceder mais estímulos, defende Jacob Kierkgard do PIIE. A escolha do BCE acontece no contexto de desemprego alto, a inflação baixa e a moeda forte, uma combinação mortífera para a periferia.
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