[View:http://www.jornaldenegocios.pt/images/2011_01/perguntas.swf:620:200]
A alteração ao estatuto dos magistrados ganhou atenção redobrada na última semana com todos os partidos da oposição a criticarem a proposta. O Executivo garante querer apenas poupar dinheiro, mas deverá hoje ceder aos magistrados e oposição.
A Justiça é um dos maiores problemas de Portugal – e da Economia. O Massa Monetária está a promove até sexta-feira um frente-a-frente sobre os alterações dos estatutos dos magistrados. É um modelo de debate novo em Portugal, que convoca a participação dos leitores, a partir de duas posições, o “Sim” de João Palma e o “Não” de Nuno Garoupa.
Depois dos argumentos iniciais apresentados quarta-feira, hoje chegam os contraargumentos. Este é um novo modelo de debate dinâmico que conta com a votação (só poderá fazê-lo uma vez) e comentário dos leitores. Para ler. E participar. Até amanhã. Na segunda-feira prestaremos contas.
Nuno Garoupa é professor na Universidade de Illinois e investigador na área do Direito. João Palma é presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.
Contra-argumentos
João Palma: “Está em causa a independência da prática judiciária, a independência na decisão”
1. Cumprimento o Nuno Garoupa que não tenho o prazer de conhecer pessoalmente. Será um gosto. E será muito útil, pois acreditando na sua boa fé, que tenho por certa, uma conversa poderia ser esclarecedora. Apreendo nas suas palavras alguma ingenuidade ou deficiente informação, porventura, e em alternativa, alguma ironia. Quando afirma, por exemplo, que é de reconhecer a ausência de demagogia governamental neste aspecto! Ou que a proposta de lei tem tão só o objectivo primordial de contenção da despesa pública! Só mesmo muita fé, fé num Governo mestre na arte do ilusionismo e do engano, pode justificar tamanha crença nas intenções desta proposta. Mas a crença escapa ao racional. Por isso é inexplicável, ou se acredita ou não se acredita. Eu sou dos que nunca acreditei. Falo de Justiça é claro, e só de justiça.
2. Os magistrados do Ministério Público, que o SMMP representa, ou pelo menos tenta, aderiram à greve geral do dia 24 de Novembro de 2010. Por partilharem com todos os outros servidores do estado, dos profissionalmente mais qualificados (médicos, engenheiros, outros quadros técnicos do Estado) aos profissionalmente menos preparados, dos sacrifícios impostos pela redução unilateral, inconstitucional, arbitrária, imoral dos cortes nos vencimentos decorrentes da Lei do Orçamento de Estado. Efeitos que hoje, dia 21 de Janeiro de 2011, todos já sentimos ao recebermos, pela 1ª vez, o vencimento com cortes substanciais. Por isso exigimos respeito! E que não se incorra na demagogia, que não reconhece na proposta Governamental, afirmando que com ela apenas se pretende que os magistrados não escapem aos sacrifícios impostos a todos. Com esta proposta o Governo tenta penalizá-los duplamente. Ou será que alguém bem intencionado acredita que todos os partidos da oposição, da esquerda à direita, ao chumbarem a proposta no Parlamento, estão interessados, ou tiram dividendos políticos, por, alegadamente, estarem a proteger supostos «privilégios» dos magistrados prejudicando o interesse de todos os outros portugueses?
3. Registo que reconhece que «as alterações aos Estatutos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público são de duvidosa eficácia. Porventura existem outras alterações mais eficientes do ponto de vista da contenção da despesa pública». E eu pergunto: porque optou, então, o Governo por tentar penalizar duplamente, repito duplamente!, repito outra vez, duplamente!, os magistrados, e não por outras medidas portadoras dessas potencialidades de que estas carecem?
4. Pois é. Esta opção reconduz-nos à questão inicial – o que está em causa é a independência dos magistrados, a desqualificação face à opinião pública, a vulnerabilidade decorrente da debilidade do seu estatuto sócio profissional. É dos livros. Resulta da experiência e é da natureza humana. A independência precisa ser preservada e cultivada. Não é a «independência de consciência dos magistrados», de que fala o Nuno Garoupa, que está em causa. É antes a independência da prática judiciária, a independência na decisão. A independência para decidir de acordo com a consciência livre e independente. O que está a ser posto em causa é essa possibilidade de cada magistrado decidir não de acordo com a sua consciência, mas determinado por constrangimentos e interferências externas ilegítimas. Que é coisa que provavelmente ninguém vislumbra nas intenções deste Governo, é claro.
5. É contra isso que os sindicatos da área da justiça têm lutado. Retire-se a intervenção cívica do SMMP na defesa da independência do poder judicial e dos tribunais, e calcula-se o que seria hoje a justiça em Portugal com tudo o que se tem passado. Vide os processos mais mediáticos dos últimos 5/ ou 6 anos. Justiça funcionalizada, amestrada, domesticada, seria a de hoje, não tivessem os magistrados e as suas estruturas representativas a capacidade para resistir às investidas do Governo para a dominar. Os sindicatos da área da Justiça existem em toda a Europa desenvolvida. São fundamentais numa democracia participada. É tempo de exorcizar traumas e tabus. E de encarar a Justiça como um problema sério. Há outros modelos, é um facto. Juízes eleitos após renhidas campanhas eleitorais.
6. A seguirmos os ensinamentos de alguns pensadores estrangeirados ainda havemos de ver os magistrados deste país patrocinados por multinacionais. Com publicidade nas togas, nas pastas, nas sentenças, nos despachos….. Mas isentos, é claro. Está-se mesmo a ver!
Nuno Garoupa: “Se falamos de independência económica, parece-me grave insinuar que haverá corrupção nas magistraturas“
1. As alterações ao Estatutos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público apresentadas pelo Governo não melhoram a justiça nem são as mais eficazes do ponto de vista de contenção da despesa pública. Seria fácil fazer melhor que este Governo. Mas o ponto do debate é distinto, nomeadamente a relação das alterações ao Estatutos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público e a independência das magistraturas.
2. Os magistrados são convocados para participar no esforço que todos os portugueses têm que fazer para corrigir o descalabro das políticas públicas dos últimos trinta anos de forma distinta pois os seus privilégios também são distintos. Existem muitos milhares de portugueses a quem certamente foram pedidos muito mais sacrifícios do que aos magistrados. Muitos outros sectores do Estado também foram duplamente penalizados. O próximo Presidente da República vai ser certamente mais sacrificado que as magistraturas ao ter de prescindir de um terço das suas reformas. Os impostos sobre o rendimento são progressivos, é natural pois que o esforço pedido aos portugueses seja também progressivo. Não vejo qualquer discriminação negativa.
3. Mesmo contra a minha opinião, vamos aceitar que as alterações ao Estatutos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público são “socialmente injustas.” Em nenhum momento isso reduz a independência das magistraturas. Aliás, a acreditar no que é publicado na imprensa, os magistrados estão zangados pelo Governo, e portanto menos passíveis de captura institucional. Sou quase tentado a dizer que vamos ter mais, e não menos, independência depois destas alterações. Se falamos de independência económica, parece-me grave insinuar que haverá corrupção nas magistraturas.
4. Eu também acho que temos magistraturas pouco independentes, que o Governo (o actual e os anteriores) não entende o que é um Estado de direito democrático, que o poder político tem uma política activa de desprestigiar os magistrados. Mas digamos em abono da verdade que os magistrados têm largas responsabilidades no estado das coisas. Simplesmente parece-me que as alterações ao Estatutos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público não mudam absolutamente nada, nem num sentido, nem noutro.
Argumentos iniciais (Quarta-feira, dia 19)
Nuno Garoupa: “Não. O Governo apenas convoca os magistrados ao esforço que pede a todos os portugueses”
1. As alterações ao Estatutos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público apresentadas pelo Governo não estão relacionadas com a independência das magistraturas, e ainda menos com qualquer reforma da justiça em curso (que, evidentemente, nunca existiu durante os seis anos de Governo Sócrates). Em abono de verdade, diga-se que a própria exposição de motivos da proposta de Lei é bastante clara nesse aspecto ao nunca mencionar qualquer razão estrutural ou reformista, limitando-se a discutir os motivos puramente orçamentais e de Administração Pública; a ausência de demagogia governamental neste aspecto é de reconhecer.
2. Estas alterações são tão só consequência do objectivo primordial de contenção da despesa pública. Ao reduzir o nível e a qualidade de vida dos magistrados, o Governo simplesmente convoca estes a participar no esforço que todos os portugueses têm que fazer para corrigir o descalabro das políticas públicas dos últimos trinta anos. Aplicando-se as medidas de contenção a todos aqueles que são remunerados pelos contribuintes, não se entende como possam essas mesmas medidas reflectir qualquer intromissão do Governo na independência de consciência dos magistrados (seria evidentemente bem diferente se apenas os magistrados participassem no esforço de contenção da despesa pública).
3. É absolutamente compreensível que os magistrados judiciais não gostem de perder privilégios adquiridos como não gostam os portugueses em geral. O Governo poderia poupar os magistrados aos sacrifícios orçamentais, mas isso seria incompreensível para a generalidade dos portugueses. Na verdade, poupasse o Governo os magistrados à contenção orçamental aplicada a todos os portugueses, então sim estaria em causa a sua independência já que ficaria a impressão de que o Governo procurava “comprar” a simpatia dos magistrados. Estou certo que os magistrados seriam os primeiros a recusar qualquer tratamento de favor pelo Governo.
4. É verdade que, do ponto de vista da racionalização dos recursos públicos, algumas das alterações ao Estatutos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público são de duvidosa eficácia. Porventura existem outras alterações mais eficientes do ponto de vista da contenção da despesa pública. Mas nada disso está relacionado com a independência das magistraturas.
5. As alterações propostas pelo Governo fundamentalmente confirmam que o ordenamento jurídico português tem por base umas magistraturas funcionalizadas. Por isso mesmo existem associações sindicais, já que nos ordenamentos jurídicos com magistraturas não funcionalizadas elas simplesmente não existem. Pessoalmente sempre defendi que temos um modelo errado, que não garante nem a independência judicial adequada a uma sociedade moderna, nem a qualidade da justiça que Portugal precisa. Contudo, esse modelo errado sempre foi defendido pelo poder político (PS, PSD e CDS) e pelo poder judicial. Em Portugal a ortodoxia jurídica reinante recusa discutir esse modelo. É verdade que noutros ordenamentos jurídicos estas alterações são uma ameaça ao poder judicial, mas precisamente porque não têm um modelo de magistraturas funcionalizadas. O que não podemos querer é manter um modelo de magistraturas funcionalizadas como nos últimos trinta anos e, ao mesmo tempo, não acarretar com as consequências quando elas não são agradáveis.
João Palma: “Claro que sim. A sensação que temos é a de que se trata de um ajuste de contas”
1. Claro que sim. Os textos do Conselho de Europa, aos quais o Governo português dá a sua anuência nas reuniões com os parceiros europeus, mas que cá dentro viola a cada passo, e os documentos de outras entidades internacionais, são explícitos no sentido em que qualquer alteração aos estatutos dos magistrados terá que salvaguardar as necessidades de manter o estatuto de independência. Este Governo e o que o antecedeu, chefiado pelo mesmo primeiro ministro, tem feito tudo o que lhe é possível para enfraquecer os tribunais e para os tornar, e aos magistrados, mais vulneráveis a interferências externas. Tal objectivo passou pela alteração de vários diplomas, desde logo o processo penal e o código penal, alterados em função de interesses específicos, fotográficos, de pessoas do poder ou do circulo do poder. Os resultados estão à vista. Os tribunais enfraquecidos, incapazes de exercerem as funções que lhes estão confiadas.
2. É perceptível para toda a gente, para o povo, se quiser, que hoje mais que nunca há leis que protegem as pessoas em função dos cargos que ocupam e, em parte, têm razão os que dizem que há uma justiça para os poderosos e influentes e outra para os pobres a mal afortunados. Os tribunais, sobretudo ao nível do crime, estão ocupados com as bagatelas penais – ofensas corporais, injurias, infracções ao código da estrada, condução sob influencia do álcool e outras infracções praticadas pelo comum dos cidadãos. Ou com os homicídios, os tráficos e outros crimes graves praticados pelos cidadãos anónimos. Com esses a lei, e por via disso os tribunais, são incomplacentes e severos muitas vezes. Põe-se o comum das pessoas indispostos com os tribunais e a criticarem a justiça. Mas esses mesmos tribunais, por força de leis feitas à medida ou por falta de meios para investigações competentes, ou por interferências superiores no destino de algumas investigações, não estão aptos a perseguir o crime de colarinho branco, a criminalidade económica e financeira, salvo em raras excepções que confirmam a regra.
3. Agora, a propósito das necessidades financeiras o Governo tenta penalizar duplamente os magistrados. Penaliza-os, tal como a todos os outros servidores do Estado, por via dos cortes decorrentes da Lei do Orçamento para 2011, já em vigor, e que se faz sentir já nos vencimentos dos magistrados de Janeiro de uma forma muito substancial. Tenta penalizá-los duplamente com os cortes por via também das alterações aos respectivos estatutos que tenta aprovar na Assembleia da Republica. É um trauma do tipo freudiano que o Senhor Sócrates tem com os magistrados. Para alguns reputados comentadores trata-se de «um ajuste de contas». É a sensação que nós também temos. Apesar de, como também já disse noutras oportunidades, a justiça portuguesa ter sido demasiado simpática e nada rigorosa com algumas pessoas. É claro que também há os portugueses, incluindo alguns cérebros iluminados de alguns comentadores, que são muito permeáveis à forma indigna como o Governo explora os mais mesquinhos sentimentos tais como a inveja e a frustração.
4. A justiça não está nada bem. Estará ainda bem pior quando os todos os magistrados forem politicamente dependentes. Saúdem-se os partidos da oposição, da esquerda à direita, que não quiseram ser cúmplices das intenções do Governo. Abriram os olhos a tempo.
- Carlos Costa e o colapso do BES. Negligente ou injustiçado? - 23/03/2017
- Os desequilíbrios excessivos que podem tramar Portugal - 21/03/2017
- A década perdida portuguesa em sete gráficos - 15/12/2016