Electricidade em dívida: Portugal não está só

07/10/2014
Colocado por: Rui Peres Jorge

Post por: Miguel Prado

AlquevaBarragem do Alqueva. Fonte: Mário Proença, Bloomberg

 

A Direcção-Geral de Assuntos Económicos e Financeiros da Comissão Europeia acaba de publicar um estudo abrangente sobre o problema dos défices tarifários no sector eléctrico pela Europa fora. A análise, intitulada “Electricity Tariff Deficit: temporary or permanent problem in the EU?”, incide não só sobre a evolução temporal desses défices mas também sobre o que distingue os vários mercados em que, pontual ou cronicamente, o sistema eléctrico vem apresentando desequilíbrios.

 

Embora muitas das observações da Comissão Europeia não sejam uma novidade para os gestores e economistas que acompanham de perto o tema das dívidas tarifárias da electricidade, vale a pena ler a análise produzida em Bruxelas, que reporta de forma pedagógica e acessível o funcionamento dos mercados de energia no Velho Continente, os diferentes sistemas de incentivo (subsídio?) associados à electricidade que nos vem chegando a casa progressivamente mais cara, bem como o papel dos governos e dos reguladores na gestão dos custos e proveitos da energia eléctrica.

 

Da leitura do estudo ressalta desde logo uma conclusão genérica: ter défices tarifários na electricidade não é uma maleita exclusiva dos “maus pagadores” (a expressão é nossa) do Sul da Europa. Como reconhece o documento, “este problema não é relevante apenas para estes países vulneráveis [Espanha, Portugal e Grécia]”. França, Bulgária, Malta e Roménia também têm desequilíbrios na gestão de custos e receitas da energia eléctrica. E ainda… a Alemanha, embora de forma pontual e numa escala que nada tem a ver com os défices de Espanha e Portugal. Conforme sintetiza um dos quadros do estudo, a dimensão das dívidas tarifárias em proporção do PIB é bem distinta (3% em Espanha, 2,6% em Portugal e 0,01% na Alemanha).

 

dividastarifariaseuropa

 

O estudo da Comissão enfatiza, em vários momentos, o papel das energias renováveis no alimentar dos défices tarifários em vários países. Correndo o risco de acirrar os defensores das energias limpas, sob o aplauso dos seus mais fiéis críticos, os economistas de Bruxelas concluem que “uma fatia crescente de electricidade renovável na produção eléctrica contribui para a probabilidade de se ter um défice tarifário”.

 

Mas é também verdade, como o mesmo documento admite, que há outros factores em jogo na criação de défices tarifários. Um dos mais relevantes será a gestão política destes desajustes entre o custo de produzir e distribuir electricidade e as receitas efectivamente obtidas. O estudo em causa nota, por exemplo, que sem uma regulação verdadeiramente independente, um sistema eléctrico pode ficar à mercê da vontade de um determinado Governo de não sujeitar os consumidores (eleitores) a aumentos acentuados na sua factura eléctrica.

 

Portugal: a dívida é sustentável ou não?

 

Trazendo o estudo para a realidade portuguesa, a análise produzida em Bruxelas está em sintonia com a que a Comissão Europeia formalmente elaborou durante o programa de assistência financeira a Portugal. Recorde-se que a Comissão por várias vezes manifestou o seu cepticismo quanto ao programa de sustentabilidade para o sector eléctrico desenhado pelo governo português.

 

O referido plano de sustentabilidade prevê que a dívida tarifária no sector eléctrico nacional seja eliminada até 2020. Rondando hoje os 5 mil milhões de euros, essa dívida ainda subirá em 2015, mas a partir de 2016 o Governo espera que o sistema eléctrico comece a gerar superávits tarifários anuais que, em conjunto com receitas da venda de licenças de emissão de CO2, permitirão reduzir progressivamente o “stock” da dívida. Em 2020, em rigor, Portugal ainda terá cerca de 600 milhões de euros de dívida tarifária eléctrica por pagar, que estão abrangidos por uma emissão de títulos de dívida que só vencem dois anos mais tarde. Mas findo esse instrumento, Portugal terá condições para viver com um sector eléctrico livre de dívida, acredita o actual Governo.

 

O estudo agora divulgado pela Comissão Europeia reconhece que no caso português houve vários factores que pesaram na geração de dívida tarifária, e que esta não foi apenas resultado da ambiciosa aposta de Portugal nas energias renováveis. De facto, o mercado nacional tem uma das mais fortes quotas de energia eólica da Europa (ver gráfico abaixo), remunerada (ainda) com tarifas que em média são superiores aos preços grossistas da electricidade. Daí vem um sobrecusto que tanto o actual Governo como o anterior decidiram suavizar, lançando-o para as facturas eléctricas dos cinco anos seguintes ao momento de ocorrência do sobrecusto.

 

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Nesta recente análise, Bruxelas reconhece que a dívida tarifária da electricidade em Portugal também é atribuível ao desajuste ocorrido em 2008 e 2009 entre as previsões do regulador para o preço de mercado da electricidade e o custo efectivo da energia (que acabou por ser mais alto reflectindo o disparo na cotação do petróleo, a que está indexado o gás natural, usado nas centrais de ciclo combinado). Mas o estudo reafirma as dúvidas deixadas durante a intervenção da troika de que o plano do actual Governo parece ser insuficiente.

 

Esta última análise de Bruxelas não menciona que os pressupostos do plano de sustentabilidade para o sector eléctrico já previam um avolumar da dívida tarifária até 2015 e só a partir daí o “stock” começaria a descer. É uma incógnita se os economistas da Comissão ignoraram voluntariamente esse pormenor ou apenas não tomaram conhecimento detalhado da planificação do Executivo de Pedro Passos Coelho. O ano 2016 (que é quando a dívida tarifária deve de facto descer) será, talvez, um melhor momento para aferir se Portugal está ou não a cumprir o prometido em matéria de combate à dívida tarifária.

 

O estudo “Electricity Tariff Deficit: Temporary or Permanent Problem in the EU?”, ainda assim, é um documento relevante para quem queira inteirar-se do que é, afinal, o défice tarifário da electricidade, de onde vem e para onde vai. Aqui, a interrogação dos autores do estudo faz todo o sentido. Vista como uma crise temporária no desenho do sistema energético europeu, a dívida tarifária poderá ser resolvida pelo livre funcionamento do mercado. Mas se em cima da mesa estiver uma doença crónica (e casos como os de Espanha e de Portugal apontam nesse sentido), o remédio poderá ser uma solução bem mais dolorosa. Para governantes, para reguladores, para os consumidores ou para as eléctricas? Com que dose de sacrifício para cada um dos actores?

Rui Peres Jorge