Prioridades trocadas nas reformas estruturais

01/03/2012
Colocado por: Pedro Romano

Apesar de o balanço da terceira avaliação do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF) ainda não ser conhecido em detalhe, a “troika” já deu alguns “highlights” no resumo publicado ontem no sítio do FMI. O documento elogia as reformas estruturais no domínio do mercado laboral e do arrendamento, mas aponta o dedo a alguma lentidão no que diz respeito ao mercado de produto, onde continua a haver rendas económicas exageradas. Os casos da energia e telecomunicações parecem especialmente complicados.

 

As indicações da “troika” tocam num elemento importante, que é a rigidez relativa dos mercados de trabalho e de produto. Recolhemos, através da AMECO, alguns dados.    

 

A “narrativa” da crise portuguesa, que a “troika” subscreve, é a de um desequilíbrio externo construído ao longo de uma década em que os salários cresceram acima da produtividade. O mecanismo implícito terá sido o seguinte: Fluxo de crédito -> Aumento do consumo -> Aumento dos preços e salários internos -> Aumento das importações -> Diminuição das exportações (por via da subida dos salários) -> Dívida/Desequilíbrio externo . 

 

Em baixo, tentamos traduzir de forma gráfica a dinâmica salarial implícita a esta narrativa. Começamos por mostrar a variação salarial Portugal vs. Alemanha e depois, “decompomos” essa evolução em três componentes: 1) o crescimento da produtividade; 2) a subida de preço dos bens e serviços, avaliados pelo deflator do PIB; 3) um “resíduo”, que é a parte que não é explicada nem pela melhoria da produtividade, nem pela variação dos preços. Na prática, é este resíduo que permite perceber se os salários estão, ou não, a absorver uma fatia maior da produção.

 

(Nota de leitura dos gráficos seguintes: os valores de cada parcela indicam o contributo relativo para a evolução do salário. Olhamos para a variação do salário, deduzimos a variação dos preços, da produtividade e obtemos o “resíduo”, que é a parte não explicada por nenhuma das componentes. Assim, em 2007 a produtividade aumentou 2,4%, os preços do produtor subiram 3,2% e houve um resíduo negativo de 2%. Tudo somado, o salário nominal aumentou 3,6%).

 

Deste primeiro gráfico retira-se uma conclusão: não há um enviesamento sistemático da evolução dos salários em favor do trabalhador. O “resíduo” ora é positivo ora é negativo (tal como, aliás, acontece no caso alemão), não revelando contudo qualquer tendência definida. Em média, o valor do resíduo é de -0,2% ao longo da série temporal.

 

 

A segunda imagem confirma que os salários alemães cresceram substancialmente menos do que os salários portugueses na última década. Põe contudo em evidência um aspecto importante: o diferencial de crescimento de salários não resulta do “resíduo” (que é semelhante ao português entre 1997 e 2010: -0,3%), mas sim do elemento “deflator do PIB”. O que significa que os salários cresceram alemães cresceram menos do que os portugueses apenas (ou em larga medida) porque os preços dos bens produzidos também cresceram menos.  

 

Este diferencial terá sido gerado sobretudo no sector não transaccionável. Em teoria, é isto que seria expectável, na medida em que o sector exportador, exposto à concorrência internacional, é um “price taker”. Esta intuição tem duas confirmações empíricas. A primeira é a evolução concomitante dos deflatores das exportações e importações nacionais, que revela que as flutuações de preços dos bens exportados é semelhante à da produção externa. O deflator global português será então mais alto devido ao preços da produção consumida internamente (o sector não transaccionável, portanto). A outra confirmação é o quadro seguinte, que mostra um diferencial de salários concentrado sobretudo em torno de sectores igualmente não transaccionáveis.

 

 

 

Havendo moeda própria, o mecanismo cambial permitira, em princípio, repor o equilíbrio de forma suave, diminuindo os preços da produção interna (salários reais e preços relativamente aos mercados exteriores). Na ausência deste política cambial, a “troika” aponta baterias à “desvalorização interna”, em que o desemprego pressiona os salários e estes se transmitem aos preços, o que permite aumentar a competitividade externa e, simultaneamente, mitigar a perda de poder de compra.    

 

Uma questão relevante a apontar é o comportamento divergente de salários e preços. Apesar das críticas à rigidez do mercado laboral, os salários nominais já começaram a diminuir (segundo dados do INE) no segundo trimestre de 2011 (antes da reforma do Código do Trabalho, portanto) e prevê-se que recuem de forma vincada em 2012 e 2013 (embora, como os dados são agregados, seja impossível saber se isto é devido a cortes salariais ou ajustamentos nos novos contratos).

 

Esta flexibilidade parece estar ausente do mercado de produtos, particularmente do sector não transaccionável. Segundo os últimos dados do INE, o Índice de Preços do Consumidor está a avançar em termos homólogos 3,62% (Dezembro 2011), em grande medida devido ao sector não transaccionável. Os cálculos que apresentamos em baixo consideram que as classes 1, 2 e 3 são transaccionáveis, que 4, 5, 6, 7, 8 e 9 são não transaccionáveis e que 10 e 11 são mistas (grelha classificativa COICOP).

 

 

A manter-se esta situação, há duas conclusões a retirar. Ao nível do mercado de produto não transaccionável, que a rigidez continua a ser elevada (eventualmente mais elevada do que no mercado laboral), o que pode servir como “bloqueio” à desvalorização interna, na medida em que não haverá transmissão de salários mais baixos ao preços praticados. O resultado final da situação é que a redução nominal dos salários não será mitigada por uma redução dos preços do sector não transaccionável (como aconteceria com a desvalorização cambial), mas sim agravada pela sua rigidez. Prioridades trocadas nas reformas estruturais?

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