O que lhe parece um musical da Broadway sobre o primeiro secretário do Tesouro dos Estados Unidos? “Granda seca”, certo? Não neste caso. “Hamilton” traz-nos quase três horas de música, com o ADN de musical, mas profundamente influenciado pelo universo do hip-hop, com muito rap e alguns momentos do R&B que enche agora as rádios. É também interpretado por um elenco jovem e multiétnico. É aquilo a que os americanos normalmente chamam um “game changer”.
O musical não é propriamente novo – estreou em Fevereiro deste ano -, mas só entrou no circuito da Broadway há três meses, tendo arrecadado perto de 60 milhões de dólares em vendas de bilhetes nesse período de tempo. Metade desse valor foi conseguido antes sequer de o espectáculo ter estreado. Barack Obama já o foi ver duas vezes. Há pouco mais de dois meses foi lançado o álbum com as 46 músicas que preenchem o musical, produzido por Questlove, o baterista de The Roots. Foi um sucesso imediato, sendo o 12º álbum mais comprado (ou ouvido em stream) na primeira semana em que esteve à venda.
O sucesso do musical é mais surpreendente tendo em conta que a personagem principal não parece ter muito potencial para inspirar horas de dança e cantoria, muito menos com hip-hop. Alexander Hamilton é considerado um dos sete “Pais Fundadores” dos Estados Unidos e foi o primeiro responsável pelas Finanças do país, enquanto secretário de Estado do Tesouro (1789-1795). Desenvolveu a base financeira da nação recém-nascida, criando um banco nacional e assumindo as dívidas dos estados.
O musical conta a história do órfão imigrante e pobre, desde a saída das Ilhas Virgens até ao seu papel decisivo na Guerra da Independência como um dos principais conselheiros de George Washington, passando pela sua influência no desenho de políticas públicas nas primeiras administrações dos EUA – onde ficaram conhecidas as discussões com Thomas Jefferson – e a sua morte num duelo com o então vice-presidente Aaron Burr. Hoje, Hamilton tem a cara na nota de 10 dólares.
O musical foi concebido por Lin-Manuel Miranda, que se tornou, aos 35 anos, no nome que mais dá que falar no mundo dos musicais norte-americanos. Foi ele que compôs as músicas e é ele que interpreta Hamilton, em cuja vida viu o percurso de um rapper. Miranda demorou seis anos a preparar o espectáculo, mas em 2009 já tinha apresentado o esboço da ideia a Barack Obama, na Casa Branca. “Estou a trabalhar num disco de hip-hop. É um álbum conceptual sobre a vida de alguém que eu acho que personifica o hip-hop: o secretário do Tesouro Alexander Hamilton [risos]. Vocês estão-se a rir, mas é verdade!”
Quem gostaria provavelmente de ver o musical seria Vítor Gaspar. Não por ter desempenhado o mesmo cargo de Hamilton em Portugal, mas por ser um conhecido admirador da figura histórica. Há um ano, o ex-ministro das Finanças escreveu um paper para o FMI sobre as lições que a Europa deveria tirar das ideias de Hamilton, nomeadamente a capacidade de criar credibilidade a partir da emissão de um activo seguro. Questionado sobre qual era a sua posição sobre a sustentabilidade da dívida, Gaspar disse que era “semelhante à de Alexander Hamilton”, sublinhando que Hamilton defendia que os EUA deveriam pagar a sua dívida. Nem todos concordam com esta visão, uma vez que Hamilton acabou por conduzir aquilo que foi, na prática, uma reestruturação de dívida norte-americana.
Ouvir Hamilton fez-me também lembrar a excelente mini-série “John Adams” (outro “founding father”), que explora as dúvidas e os debates que os primeiros governos dos EUA enfrentaram. Veja aqui uma cena em que Hamilton debate com Jefferson sobre o que fazer com a dívida dos estados.
Concorde ou não com a visão de Gaspar sobre Hamilton, o musical é altamente recomendável. Se não estiver nos seus planos ir a Nova Iorque nos próximos meses, pode sempre ouvir a banda sonora aqui:
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