Lições de Chipre: feridas por sarar

03/04/2013
Colocado por: Nuno Aguiar

Cipriotas criticam “solidariedade europeia”. Fonte: Simon Dawson/Bloomberg 

 

Nada será como antes. A crise da Zona Euro tem sido tudo menos entediante, mas a gestão do resgate cipriota veio apimentar ainda mais as coisas, trazendo para o debate público um conjunto de ideias e soluções inéditas. Assistimos a propostas para taxar pequenos depositantes, bancos centrais a ameaçar directamente um país e a estreia de controlos de capital num Estado-membro da moeda única. Veja as lições e as cicatrizes deixadas pela crise em Chipre:

 

1 – Os depósitos já não são sagrados. A proposta para taxar os depositantes cipriotas inicial era bastante agressiva e castigava quase de forma igual – 2,74 pontos de diferença – um depósito de mil euros e outro de dez milhões. Taxar os depositantes manteve-se como condição essencial para o resgate, mas contas com menos de 100 mil euros foram salvaguardadas na propostas final. Ainda assim, clientes do Laiki deverão ter um haircut de 80%. No Banco de Chipre pode chegar aos 60%. Num processo feito de sucessivos avanços e recuos, os responsáveis europeus reconhecem agora que impor perdas a depósitos abrangidos pelo fundo de garantia foi um erro. Contudo, fica claramente a ideia de que, em crises mais graves, os depósitos – mesmo que apenas os mais elevados – deixaram de ser terreno sagrado e poderão voltar a ser chamados a pagar.  

 

2 – Um país do euro pode ter controlos de capital. Chipre vai testar esta teoria, mas ela tem, pelo menos o acordo de Bruxelas, FMI e BCE. No mínimo durante o próximo mês estarão em vigor fortes e inéditas limitações à circulação de capitais dentro da ilha, assim como para outros Estados Membros. Isto depois de os bancos cipriotas terem sido forçados a encerrar durante quase duas semanas. Hoje e no curto prazo, um euro vale o mesmo em Nicósia e em Berlim? Economistas e analistas acham que não. O que levanta outra questão mais complexa: com estas limitações, a Zona Euro ainda é uma verdadeira união económica e monetária? O governo cipriota e as autoridades europeias argumentam que são controlos temporários, mas a Islândia está há vários anos a tentar levantá-los.

 

3 – Saídas da Zona Euro já não são tabu. A crise grega e a relação difícil entre o governo de Atenas e a troika já tinham aberto esta porta, mas Chipre deixou-a escancarada. Durante o processo de negociação, responsáveis europeus fizeram declarações muito agressivas em relação a Chipre e a saída da ilha terá sido discutida abertamente em algumas reuniões. Quinta-feira, Mario Draghi disse que não admitia cenários de saída do euro, mas poucas semanas antes, o Banco Central Europeu (BCE) ameaçou indirectamente Nicósia com a saída da moeda única, dizendo que poderia deixar de apoiar os seus bancos. Mas já lá vamos.

 

4 – O “pensamento de grupo” é um perigo real para a Zona Euro. A crise tem-se assemelhado a uma interminável reprise do “Groundhog Day”. Quantas vezes já não assistimos a este cenário: um grupo de responsáveis europeus reúnem-se e, depois de um debate aceso com propostas e contra-propostas, chegam a uma solução que acaba por agravar a crise. Parece ter sido o caso da criação do imposto sobre depósitos abaixo de 100 mil euros, que estariam protegidos pelo fundo de garantia. No entanto…

 

5 – …quando encurralados, os responsáveis europeus são capazes de ceder. Esgotadas o rejeitadas as suas opções iniciais, a Europa acaba por recuar.

 

6 – O BCE pode ameaçar um país com a expulsão do euro. Durante o impasse nas negociações, o BCE ameaçou o governo cipriota de deixar de apoiar os seus bancos. Os economistas concordam que, caso isso acontecesse, seria praticamente inevitável uma saída da moeda única. O banco central já tinha feito pressões semelhantes nos bastidores, mas nunca de forma oficial, levantando importantes questões de legitimidade democrática. Na prática, um órgão não-eleito estaria a expulsar um Estado Membro.

 

7 – A democracia perde. Num primeiro momento, o parlamento cipriota chumbou o programa de resgate proposto pelo governo e pela troika. Contudo, depois de ajustes à proposta inicial e uma forte pressão do BCE, foi encontrada uma solução de reestruturação do sistema financeiro, que não teve de passar pelo Parlamento.

 

8 – Os países do Norte – Alemanha, Áustria, Holanda e Finlândia – estão cada vez mais hesitantes em aceitar novos resgates. Mesmo que os aceitem, estão a exigir mais dos países em dificuldades. Em Berlim, parece sentir-se o impacto das eleições de Setembro. A nova liderança europeia, cuja face é o novo presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, parece ser também mais radical. A ideia de que não há almoços grátis foi e continuará a ser sublinhada. O condicionalismo será cada vez mais a regra.

 

9 – O tamanho interessa. Os responsáveis europeus parecem mais confortáveis a castigar um pequeno país da moeda única do que gigantes, com possíveis problemas sistémicos.

 

10 – O sector privado será mais vezes chamado a pagar a crise. Nas palavras do BNP Paribas: “A troika tentará utilizar dinheiro privado quando puder limitar o envolvimento do sector público. Apesar de cada caso ser único, os princípios são os mesmos.” Em países pequenos, o sector privado parece enfrentar agora mais risco.

 

11 – O fundo de garantia de depósitos serve apenas para cobrir bancos e crises de pequena dimensão.

 

12 – O FMI deixou de ser um parceiro tolerante. A crise de Chipre parece ter acentuado as divisões dentro da troika, particularmente entre Bruxelas e o FMI. Escreve o Barclays: “O Fundo está claramente a avaliar de forma mais crítica os novos programas, especialmente quando o rácio de dívida em percentagem do PIB ultrapassa os 100%. Isto é, haverá uma maior preocupação sobre o impacto da arquitectura do resgate na sustentabilidade da dívida de um país. No caso de Chipre, por exemplo, isso significou um empréstimo mais baixo (dez mil milhões de euros) e encontrar outras fontes de financiamento (taxar depósitos).

 

13 – BNP Paribas: “O risco moral foi reduzido.” Para a instituição financeira, as soluções de bail-in ajudam a reduzir o “moral hazard”. Será demais?

Nuno Aguiar