Os mais críticos da União atiram sem pudor que uma das inevitáveis conclusões da actual crise da UE – e da forma como está a ser gerida no tabuleiro político – é a perda de soberania das periféricos a favor do “core” europeu e de uma linha política liberal. O acordo da última semana foi fértil em argumentos para esta linha de argumentação:
Grécia compromete-se a privatizar activos que equivalem a um terço do PIB português
A 12 de Fevereiro o Governo grego considerou inaceitável a sugestão da equipa do BCE, FMI e Comissão Europeia que apontava para a importância do país vender 50 mil milhões de euros em activos (o equivalente a cerca de um terço do PIB português), um valor que comparava com o plano grego de alienar 5 a 7 mil milhões. “Nós só recebemos ordens do povo grego” disse no dia o porta voz do governo grego, que foi secundado no dia seguinte pelo próprio primeiro ministro.
Exactamente um mês depois, a troco de um corte na taxa de juro dos empréstimos concedidos pela Europa – e que a maioria dos economistas considerava exagerada – a Grécia aceita vender 50 mil milhões de euros em activos.
Irlanda não recebe o mesmo corte que a Grécia na taxa de juro, enquanto não subir IRC
Após a intervenção do FMI, BCE e Comissão no final do ano – vista no país como um ataque profundo à independência – os irlandeses têm na sua baixa taxa de IRC um dos últimos pontos de conforto de soberania. O governo de Brian Cowen acabou por cair devido à intervenção, mas manteve o o IRC nos 12,5%.
Na sexta-feira, a Irlanda não conseguiu o mesmo corte de juros da Grécia (de um ponto percentual) porque… Enda Kenny, o novo primeiro ministro, se recusou a aumentar a taxa de IRC contra as pressões da França e Irlanda. As negociações continuam no entanto até à Cimeira de 24 e 25 de Março
Portugal e Espanha aceitam condições do “core”
Em geral, Portugal e Espanha têm seguido as condições impostas pelo centro europeu. Sócrates viajou a Berlim há poucos dias para apresentar os seus planos a Merkel e, na reunião de sexta-feira, apresentou em detalhe as medidas para 2011: o apoio foi garantido de tal forma que, em plena crise politica, Olli Rhen, o comissário europeu, avisa hoje que espera que os problemas políticos não interfiram nos planos apresentados, nomeadamente, os cortes de pensões e aumentos de impostos previstos para 2012.
Espanha terá sido mais discreta mas, ao que constou pelo menos a Mário Soares, aceitou as condições por carta e Zapatero terá estado apagado na última reunião – decisiva para o futuro do euro.
Vista esta sequência, a forma como as políticas estão a ser conduzidas na Europa, nomeadamente relativamente aos países da periferia, torna inevitável recordar a “Doutrina de Choque” de Naomi Klein, jornalista e activista de esquerda canadiana: no seu livro de 2007 a escritora defende que, desde o golpe de Estado de Pinochet no Chile em 1973, o avanço das doutrinas liberais de influência norte-americana foram favorecidas por desastres, desespero e choques.
Estarão a Comissão, FMI e BCE a aplicar a sua própria doutrina de choque à periferia europeia?
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