Carlos Costa e o colapso do BES. Negligente ou injustiçado?

23/03/2017
Colocado por: Rui Peres Jorge

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Carlos Costa vai ao Parlamento defender (mais uma vez) a sua actuação na crise BES, o banco que colapsou em 2014, meses depois do fim do programa de ajustamento da troika, e que segundo algumas estimativas já terá custado à economia nacional quase 10% do PIB. A polémica voltou a aquecer há umas semanas após uma reportagem da SIC (Assalto ao Castelo) que descreveu o desempenho do Banco de Portugal (BdP) entre o hesitante e negligente.

 

O governador reagiu com energia. Dois comunicados, em dois dias seguidos, após a emissão das duas primeiras partes da reportagem, que foi emitida em três dias. Na semana a seguir pediu para ser ouvido no Parlamento para defender a honra, e deu uma longa entrevista ao Público.

 

Com tanto alarido nas últimas semanas vale a pena sintetizar os argumentos, contra-argumentos e o contexto particular em surgem: um ano decisivo para o futuro do Banco de Portugal e para o mandato de Carlos Costa à frente da instituição.

 

 

O que há de novo na polémica do BES?

 

A polémica reacendeu-se em torno de uma reportagem que revela vários documentos e avisos que alertavam para a gravidade das práticas de gestão do GES e para os problemas no BES, recuando até 2011, mas com intensidade em 2013. Entre eles está:

 

1. Um relatório de final de 2013 de uma equipa técnica do BdP – que nunca chegou à Comissão Parlamentar de Inquérito – que sugere a retirada de idoneidade a quatro responsáveis do BES, incluindo Ricardo Salgado.

 

2. Um relatório do BPI, de início 2013 e entregue a Carlos Costa no Verão desse ano, que dá conta da dimensão do buraco financeiro no GES;

 

3. Troca de correspondência com o regulador do Dubai sobre a dimensão (escondida pelo BES ao regulador) da operação de financiamento do GES através de um braço financeiro no emirado que vendia dívida do grupo a clientes – muitos deles angolanos, e politicamente expostos ao regime local. (A venda de dívida do GES a clientes do BES em Portugal é uma das dimensões do colapso do banco – vejam-se os lesados do BES)

 

O momento da polémica é importante?

 

Sim, sem dúvida. Daí também a forte esforço comunicacional do governador do banco central. A polémica surge num momento chave para Carlos Costa e o Banco de Portugal em pelo menos quatro dimensões:

 

1 – Costa verá quase toda a equipa de administração renovada entre 2016 (entraram dois novos administradores, Elisa Ferreira e Luís Máximo dos Santos) e 2017 (entrarão dois ou três novos administradores). De acordo com a nova Lei orgânica do banco central, governador passou a escolher os nomes dos administradores, mas estes continuam a ser nomeados pelo Governo (que antes dominava todo o processo). Esta solução exige negociação, que não tem estado fácil.

 

2 – Está a ser estudado um novo modelo de coordenação da supervisão que, de acordo com uma proposta de Carlos Tavares, poderá retirar poderes ao Banco de Portugal;

 

3 – A responsabilidade do sucesso ou insucesso da venda do Novo Banco, que deverá acontecer até ao Verão, será partilhada com governo.

 

4- O sistema financeiro continua a atravessar um momento difícil, pelo elevado malparado e baixos lucros. Há ainda casos particulares, como o do Montepio, que tem sido visado em várias notícias pelas suas relações com o BES, incluindo na reportagem da SIC.

 

Quais as principais críticas a Carlos Costa?

 

O banco deveria ter agido de forma mais decidida, retirando a idoneidade a Ricardo Salgado, e forçando uma intervenção pública se necessário (O BES recusou sempre dinheiro da troika ao longo de todo o programa de ajustamento)

 

Ricardo Salgado liderou o banco até 20 de Junho de 2014, ou seja, um mês e pouco antes do colapso da instituição. Nunca perdeu a idoneidade apesar dos muitos indícios que a colocavam em causa, e de essa ser a recomendação até de directores do banco, avança o Público.

 

Entre os indícios contra a idoneidade de Salgado – vários deles considerados na avaliação dos técnicos do BdP no relatório referido pela SIC e também referidos pelo Público – estavam as sucessivas regularizações de declarações ao Fisco (que indiciavam risco de intenção de fuga ao fisco), os 14 milhões recebidos de José Guilherme como “liberalidade”; a permissão da exposição dos clientes do BES ao grupo, o buraco financeiro na holding do grupo financiada com dinheiro do BES.

 

 

O preço da hesitação foi elevado, continuam os críticos: o BdP não evitou o colapso do banco, nem poupou dinheiro aos contribuintes que acabaram a ser chamados a financiar a resolução, e pelo caminho permitiu (e para alguns até incentivou) que muitos investidores perdessem dinheiro no aumento de capital realizado em Junho de 2014.

 

Como se defende Carlos Costa?

 

Resumidamente, diz que:

 

1 – Não entregou ao Parlamento o relatório dos técnicos que sugeria uma intervenção tempestiva porque, tratando-se de um documento de trabalho, não era obrigado a tal.

 

2 – Legalmente não podia fazer mais do que fez, pois só poderia tirar a idoneidade a Ricardo Salgado com decisões judiciais contra a sua gestão, que não existiam. Acrescenta que também não podia usar a informação relativa às regularizações fiscais de Salgado, pois essa informação estava protegida por Lei (o que na interpretação de Carlos Costa até o impediu de usar informação que foi tornada púlbica pelo próprio Ricardo Salgado)

 

3 – Optou assim por investigar, reflectir e pressionar Ricardo Salgado, num processo que se prolongou de Fevereiro de 2013 até Junho de 2014.

 

4 – Garante que acompanhou de perto os problemas e riscos e investigou as várias dimensões do problema, incluindo a contaminação das contas do banco pelas do grupo. Acrescenta que o colapso do BES só se tornou inevitável por actos de gestão adoptados na recta final da gestão de Ricardo Salgado.

 

Estes são argumentos que Carlos Costa tem repetido, e que poderá ter de usar se tiver de responder em tribunal mais à frente. Vale a pena por isso recuperar as palavras do próprio governador na entrevista ao Público sobre alguns dos pontos polémicos.

 

O relatório dos técnicos foi omitido do Parlamento, porquê?

 

O regulador responde que “os documentos de trabalho não são abrangidos pelo dever de divulgação”, acrescentando: “O documento em causa faz parte de uma série de reflexões internas que se iniciaram por minha iniciativa em Fevereiro de 2013 a propósito de notícias publicadas na imprensa que visavam determinar se havia fundamentação para aquilo que era publicado e qual a gravidade dessas mesmas actuações”.

 

Porque não seguiu a recomendação dos técnicos? 

 

Carlos Costa insiste que fez o que os técnicos sugeriam: reflectiu, investigou, e pressionou. “O que é importante dizer é que aquilo que o documento [dos técnicos do BdP] sugeria, que era prosseguir a reflexão, foi exactamente aquilo que foi feito: primeiro, prosseguir a reflexão sobre os factos que estavam a ser indiciados, segundo, confrontar as pessoas em causa com esses mesmos factos e, terceiro construir a prova para depois em função da prova saber quais as consequências que se deviam retirar dessa prova.”

 

E no seu entender, a estratégia funcionou: “… [Daí a] sucessiva acumulação de informação que nos leva a que em 16/17 de Abril de 2014 o Dr. Ricardo Salgado remetesse ao Banco de Portugal as cartas de renúncia aos cargos cujos registos se encontravam pendentes junto do Banco”. Mais: “Podíamos fazer pressão e fizemos até ao ponto de as pessoas aceitarem apresentar um plano de sucessão e aceitarem que não fariam parte dos órgãos da administração e mais, aceitar que toda a família se afastaria da gestão do banco. E fizemos tudo no limite do que era permitido e mantendo uma grande pressão”

 

Porque não retirou a idoneidade, nem forçou reestruturação do banco?

 

Carlos Costa diz que a Lei não lhe permitia ir além da pressão: “Não podia por uma razão simples. Porque do ponto de vista jurídico há dois acórdãos, o primeiro, proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 2005 e o segundo pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, em 2012, e depois um terceiro acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, já depois da Resolução, em 23 de Setembro de 2015, que diziam claramente que a retirada da idoneidade dependia da existência de prévias condenações judiciais. E as condenações judiciais não bastava que tivessem sido proferidas, era necessário que tivessem transitado em julgado”.

 

Aumento de capital em Junho, colapso em Agosto. Como?

A narrativa do governador é a de que, embora numa situação sensível, até Junho tinha tudo sob controlo, ao ponto de permitir o aumento de capital, mas que tudo desabou no mês seguinte, por razões ainda desconhecidas…: “A queda do BES só se manifestou no dia 27 de Julho, em que apresentaram as contas trimestrais – e apresentaram uma insuficiência de capital, abaixo dos mínimos exigíveis. E não conseguiram demonstrar que conseguiriam, em tempo útil, repor os níveis de capital exigidos para continuar a operar”. Para Carlos Costa, “O contágio através de dívida [do GES ao BES] não foi determinante para aquelas perdas. O que foi determinante foram as operações que se revelaram no final do segundo trimestre de 2014”. “Neste momento está em segredo de justiça, mas não foi senão mão humana que fez com que o BES, de um momento para o outro e surpreendendo todos (incluindo quadros do banco), apresentasse uma perda de uma dimensão que jamais poderíamos antecipar.”

 

Este argumento de que tudo colapsou com os dados revelados em Julho é importante para se defender dos que o acusam de ter permitido um aumento de capital, sabendo da situação do banco. Em Espanha, como noticiámos no Negócios, o ex-governador do Banco de Espanha foi a Tribunal por ter permitido que o Bankia fosse para a bolsa, com conhecimento da fragilidade do banco.

Rui Peres Jorge