A ministra das Finanças foi terça-feira ao Parlamento apresentar a proposta de Orçamento do Estado para 2015, e entre outras apreciações elogiou o aumento da transparência orçamental nos últimos anos em Portugal, em particular a disponibilização de informação mais detalhada sobre as contas do Estado e das suas empresas. “Uma verdadeira reforma estrutural”, afirmou. Maria Luís Albuquerque tem em parte razão no que defende. O problema é que mais transparência orçamental não significa mais transparência no OE. É que o documento inclui previsões macroeconómicas cada vez mais questionadas, não explica os principais cortes em prestações sociais, não dá conta das folgas orçamentais que guarda, propõe poupanças misteriosas, e conta com reformas de impostos (IRS e fiscalidade verde) que ainda nem sequer deram entrada no Parlamento.
Maria Luís Albuquerque tem razão ao elogiar a melhoria da transparência orçamental, que diminuiu os riscos de desorçamentação (muitas empresas e entidades que não contavam para o défice passaram a fazê-lo), e garantiu a publicação de informação que permite um acompanhamento mais rigoroso das contas no Estado e das suas empresas, incluindo a dívida acumulada e a dívida em atraso. Esta transformação foi imposta em grande medida pela troika (nada como um credor para impor um bom sistema de controlo), mas teve início de forma mais visível mesmo antes da troika chegar. A melhoria infelizmente não contagiou a proposta de Orçamento em dimensões fundamentais. Senão vejamos.
Dúvidas crescentes sobre o crescimento da economia
No Documento o Governo apresenta uma previsão de crescimento real do PIB de 1% em 2014 e 1,5% em 2015. O optimismo do valor para 2015 está a ser questionado por uma várias análises independentes, como a agência de rating Fitch.
O Executivo também espera um crescimento mais baseado na procura interna (consumo e investimento) que gera mais receitas fiscais, mas ao mesmo tempo antecipa uma redução das importações – uma evolução contra-intuitiva que o relatório de Orçamento também não explica.
Mais opaco é o efeito da evolução dos preços sobre o crescimento economia. Num contexto de riscos de deflação, o Governo reviu significativamente em alta o deflator do PIB, que no fundo é a “taxa de inflação” que considera todos os bens de economia, e não apenas os bens de consumo que são considerados na taxa de inflação usada habitualmente. Uma consequência desta revisão é que para a mesma taxa de crescimento real, o Governo prevê um PIB nominal superior.
A questão parece um detalhe técnico, mas é importante pois, por um lado, o cálculo das receitas fiscais depende do crescimento nominal da economia; e por outro lado, o peso no PIB das variáveis orçamentais (receita, despesa, dívida, défice e outras) é calculado em relação ao valor do PIB nominal (quanto maior for, menor a dimensão relativa das variáveis orçamentais).
A UTAO, na análise preliminar ao OE, nota que, para 2014, entre a previsão inscrita do segundo Orçamento Rectificativo (apresentado em Setembro) e a do Orçamento para 2015, há uma revisão em alta do chamado deflator do PIB de 0,7% para 1,4%. E desta diferença de 0,7 pontos, só 0,2 são explicados por alterações metodológicas (associadas à recente reforma no Sistema Europeu de Contas), notam os técnicos parlamentares, que acrescentam que para 2015 há também um efeito semelhante.
Resumindo, o valor de PIB mais importante para construir o Orçamento do Estado cresceu inesperadamente e o Governo não sentiu qualquer necessidade de o explicar no relatório, onde aliás nem apresenta os valores de PIB nominal que utiliza.
(Na mesma análise, a UTAO nota ainda que a previsão do PIB de 2014 comunicada a Bruxelas no final de Setembro – esta já calculada já com a nova metodologia do Sistema Europeu de Contas – foi revista em alta quase mil milhões de euros no Orçamento do Estado, apresentado apenas 15 dias depois).
Folgas e pressões orçamentais aparecem e desaparecem
No mesmo relatório a UTAO evidencia que entre o Documento de Estratégia Orçamental apresentado em Abril e a proposta de Orçamento o Governo triplicou a estimativa de pressões orçamentais em 2015, de 0,3% do PIB (500 milhões de euros) para 0,9% (cerca de 1500 milhões). Estas pressões são dinâmicas automáticas em cada ano sobre a receita ou a despesa pública que é preciso compensar, o que significa que, em poucos meses, surgiu a necessidade de mais mil milhões de euros de medidas de austeridade. Por exemplo, no OE, o aumento do número de pensionistas exigirá um aumento de despesa de 0,4 pontos de PIB (cerca de 700 milhões de euros de despesa a mais) o que, só por si, ultrapassa em montante total de pressões previstas em Abril, no DEO, e que também já incluía um impacto negativo por aumento dos pensionistas.
Do lado das folgas a transparência também não é a melhor. O Orçamento contempla uma reserva orçamental (para despesas com salários) e uma dotação provisional (para fazer face a outra eventualidades) que o relatório quantifica em 215 milhões e 533,5 milhões de euros, respectivamente. Os técnicos parlamentares notam, no entanto, que nos sistemas informáticos de carregamento do OE o Executivo aponta para uma reserva orçamental de 435,6 milhões de euros, cerca do dobro da assumida no relatório.
Um nevoeiro sobre os impostos
O Governo apresentou uma proposta de Orçamento do Estado para um ano em que planeia uma reforma do IRS e uma reforma da fiscalidade verde. A primeira foi apresentada como a maior reforma de 25 anos e a segunda explica o maior aumento de tributação indirecta desde 2005. Mas não só as propostas de reforma não entraram no Parlamento, como poderão ainda incluir alterações com impactos orçamentais significativos – nomeadamente a introdução de uma cláusula de salvaguarda no IRS.
No relatório do OE as explicações para a evolução de cada um dos impostos são simplesmente genéricas. A descida de IRC em dois pontos (que deveria contar com um alívio da austeridade em 247 milhões de euros) também não surge referida no documento.
Corte de 100 milhões de euros pouco claro
Uma das principais medidas de consolidação orçamental em 2015 é a introdução de um tecto nas prestações sociais não contributivas, com o qual o Executivo pretende poupar 100 milhões de euros. O relatório do OE diz apenas que se prevê a introdução de “um tecto global para as prestações sociais não contributivas substitutivas de rendimentos do trabalho”, acrescentando que “este procedimento permitirá assegurar que os beneficiários das prestações sociais não recebem mais do Estado do que receberiam se auferissem rendimentos do trabalho”.
Pedro Mota Soares, o ministro da Segurança Social, explicou hoje o que tem em mente: irá somar todas as prestações sociais de cada beneficiário (considerando apoios a renda, RSI, abonos e outros) e se a soma ultrapassar um valor que ainda não está definido – mas deverá rondar os 560 a 600 euros mensais – irá cortar nas prestações que considera substitutivas do trabalho: o subsídio social de desemprego e o RSI (embora neste último caso não seja consensual se é uma prestação substitutiva do rendimento do trabalho). O Governo não apresentou uma estimativa para o número de beneficiários nesta situação.
O mistério das poupanças com pareceres e consultoria
O Governo diz que poupará mais de 300 milhões de euros em pareceres, consultoria e tecnologias de informação em 2015, mas mesmo assim gastará 1.309,7 milhões de euros, um crescimento de 24% face à previsão de 2014 (mais 256 milhões de euros). Esta discrepância entre a poupança estimada e o aumento das despesas chamou a atenção da UTAO, que diz não conseguir avaliar a razoabilidade da poupança.
Estes são alguns dos exemplos de problemas de falta de transparência na proposta de Orçamento. A este respeito vale a pena recordar que não são problemas novos.
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