(Post alterado no título (com o” AFINAL NÃO”) e com parágrafo inicial que dá conta de uma alteração na informação prestada ao Negócios e inclui uma ligação para o post onde explicamos as consequências. O resto do post mantém-se igual)
Uma confusão no BCE: ao contrário do inicialmente comunicado pelos serviços do banco central, os lucros do QE vão, afinal, ser nacionalizados, alinhando-os com o tratamento dado aos riscos. As consequências são positivas para as contas públicas nacionais. Apresentamos as consequências aqui.
O programa de alívio quantitativo (QE, Quantitative Easing) anunciado a semana passada pelo BCE está a dar que falar. Um dos temas mais debatidos em Portugal é o das implicações orçamentais da compra de dívida pública pelo banco central, visto que pode poupar milhões de euros aos cofres públicos.
Há ainda muita incerteza sobre o tema – na verdade o BCE deu ainda poucos pormenores técnicos, mas há já uma característica do programa que merece nota, por ser surpreendente e por afectar de forma relevante quaisquer cálculos, e que o Negócios avançou na segunda-feira: o programa do BCE nacionaliza 91% do risco da compra de dívida, mas mutualizará os lucros obtidos pelos vários Estados-membros (de acordo com a respectiva participação na chave de capital) os lucros da operação. Igualmente relevante é a uma limitação aos montantes que o BCE pode comprar em Portugal. Vejamos os detalhes e o porquê… e prepare-se para uma possível desilusão quanto às poupanças orçamentais da bazuca de Mario Draghi (no foto).
Características do programa de “quantitative easing”
Este é o plano do BCE:
– O BCE irá comprar títulos ao ritmo de 60 mil milhões de euros por mês entre Março deste ano e Setembro do próximo ano.
– Este valor já inclui as compras ao abrigo dos programas de compras de obrigações titularizadas (Covered Bonds e ABS) iniciados em Outubro e vinham a crescer ao ritmo de cerca de 10 mil milhões de euros por mês. Restam 50 mil milhões de euros para as compras adicionais.
– Do total de compras adicionais, cerca de 12% serão dívida de instituições europeias (BEI, MEE, etc), as quais terão risco partilhado entre os bancos centrais da Zona Euro. Equivale a qualquer coisa como 5 mil milhões de euros. Ficam então 45 mil milhões de euros para comprar dívida soberana.
– O BCE avançou também que 8% dos gastos adicionais serão em dívida soberana, o que também terá o risco partilhado. Usando a mesma métrica, serão cerca de 4 mil milhões de euros para o total da Zona Euro.
– Restam portanto qualquer coisa como 41 mil milhões de euros por mês gastos em dívida soberana nacional, cujo risco ficará com cada Estado membro. Ou seja, dos 45 mil milhões de euros gastos em dívida (810 mil milhões nos 18 meses de compras), 41 mil milhões milhões (ou 91%) ficam com risco nacionalizado. Só os restantes 9% ficam com o risco mutualizado.
Visto de outra forma: se o BCE comprar 100 milhões de euros de dívida grega e a Grécia não pagar nada, 9 milhões de euros serão assumidos como perdas pelos 19 bancos centrais da Zona Euro (Portugal ficaria com 2,5% desse valor), e 91 milhões abateriam como prejuízo às contas do banco central grego.
(Uma nota final importante: nas últimas semanas escreveu-se que a partilha de risco seria de 80%-20%, um número avançado pelo BCE. Esta divisão considera apenas o montante adicional de compras (os tais 50 mil milhões de euros por mês), dos quais 20% têm risco partilhado (12% das obrigações das instituições europeias e 8% em compra de dívida soberana) e os restantes 80% têm risco nacionalizado)
Lucros mutualizados pelos estatutos
Ora, se os riscos são nacionalizados, os lucros também serão. Certo? Bom, não. E esse é exactamente o ponto que o Negócios avançou, após confirmação em Frankfurt.
Os riscos da compra de dívida estão de facto nacionalizados (em 91%), mas os lucros do BCE com essas compras serão mutualizados, isto é, serão somados num bolo e depois distribuídos aos bancos centrais nacionais respeitando a chave de capital do BCE.
A justificação para esta opção remete para os estatutos do Sistema Europeu de Banco Centrais e do BCE, apurou o Negócios.
Os artigos 32.1, 32.2 e 32.5 definem que o normal é a distribuição de lucros e perdas respeitar a chave de capital:
32.1. The income accruing to the national central banks in the performance of the ESCB’s monetary policy function (hereinafter referred to as ‘monetary income’) shall be allocated at the end of each financial year in accordance with the provisions of this Article.
32.2. The amount of each national central bank’s monetary income shall be equal to its annual income derived from its assets held against notes in circulation and deposit liabilities to credit institutions. These assets shall be earmarked by national central banks in accordance with guidelines to be established by the Governing Council.
32.5. The sum of the national central banks’ monetary income shall be allocated to the national central banks in proportion to their paid up shares in the capital of the ECB, subject to any decision taken by the Governing Council pursuant to Article 33.2.
33.2. In the event of a loss incurred by the ECB, the shortfall may be offset against the general reserve fund of the ECB and, if necessary, following a decision by the Governing Council, against the monetary income of the relevant financial year in proportion and up to the amounts allocated to the national central banks in accordance with Article 32.5.
No entanto, não tem de ser sempre assim, como refere o artigo Artigo 32.4, o qual permite que o Conselho do BCE indemnize os bancos centrais como achar apropriado caso existam perdas.
32.4. (…) The Governing Council may decide that national central banks shall be indemnified against costs incurred in connection with the issue of banknotes or in exceptional circumstances for specific losses arising from monetary policy operations undertaken for the ESCB. Indemnification shall be in a form deemed appropriate in the judgment of the Governing Council; these amounts may be offset against the national central banks’ monetary income.
É este artigo 32.4 que permite a nacionalização do risco que foi votada em Frankfurt com um consenso consenso entre os Governadores. Ou seja, nenhum votou contra.
E quais as implicações orçamentais
O programa de compra de dívida do BCE tem várias possíveis implicações orçamentais:
1) Uma delas é a redução do custo de financiamento no mercado na nova dívida emitida, que não analisaremos aqui,
2) Outra mais subtil, e potencialmente mais poderosa, resulta dos bancos centrais distribuírem aos Estados os lucros que obtêm (incluindo com os juros da dívida pública) através de dividendos. Num mundo simplificado, um Estado deixa de pagar juros sobre essa dívida que fica na posse da autoridade monetária. No entanto, como veremos, não é bem isso que acontecerá.
De facto, o valor das poupanças com juros associados à dívida adquirida pelo banco central, tem de ser ajustado (em baixa) por duas limitações impostas sobre: as quantidades que serão compradas pelo BCE e a forma de distribuição de lucros.
Limite de quantidades
Segundo as regras avançadas na semana passada, o BCE não poderá deter mais de 33% da dívida transaccionável do país, nem mais de 25% de cada emissão. Este limite é difícil de calcular, mas:
– Olhando para a totalidade da dívida transaccionável nacional no final de Dezembro, o limite dos 33% estaria entre 31 mil milhões de euros (se consideradas apenas Obrigações do Tesouro) e 36 mil milhões (se incluídos os Bilhetes do Tesouro).
– Dada a participação nacional no capital do BCE (2,5%), Portugal poderia aspirar a compras até 2016 de cerca de 20,25 mil milhões de euros de dívida pública (2,5% aplicados a um total de compras de 810 milhões de euros).
– A presidente do IGCP, numa recente entrevista, colocou o valor de compras potenciais em 24 a 25 mil milhões de euros, o que parece um valor demasiado elevado dado o limite anterior, mas possível se forem feitos rearranjos dentro da distribuição das compras pelos vários tipos de activos favorecendo a dívida pública.
– É ainda importante notar que o BCE já detém dívida portuguesa ao abrigo de um anterior programa de dívida pública do BCE (SMP). Ninguém sabe o valor que continua nos livros de Frankfurt, mas na mesma entrevista a presidente do IGCP, apontou para 14 a 15 mil milhões de euros.
Conclusão: Segundo Cristina Casalinho será razoável esperar compras de dívida ao abrigo do programa de QE na casa dos 10 mil milhões de euros, metade do potencial.
(E este é um valor que parece elevado se considerarmos como limite os 20,25 mil milhões de euros de compras de dívida pública que resultariam da chave de capital. Nesse caso, e considerando os valores mencionados pela presidente do IGCP para as obrigações ainda no balanço do BCE, as compras adicionais de dívida nacional poderiam ficar-se pelos 5 a 6 mil milhões de euros)
Implicações financeiras: Admitindo as compras de 10 mil milhões, e supondo que o banco central devolveria ao Estado português a totalidade dos juros que pagou sobre as obrigações (o que não será a regra aplicada) e assumindo um juro implícito na dívida de 3,5%, temos:
1) Poupança potencial das compras do BCE: 875 milhões de euros por ano (a aplicação de uma taxa de juro de 3,5% a 25 mil milhões de euros).
2) Poupança ajustada às compras adicionais possíveis: 350 milhões de euros por ano (uma taxa de juro de 3,5% a 10 mil milhões de euros).
(Nota importante: à medida que a dívida do SMP for chegando à maturidade poderá ser substituída por novas compras, o que ajudará a gestão da dívida pública, visto que permite “rolar” dívida. O que o BCE já tem na sua carteira também poupa dinheiro ao Estado, mas do ponto de vista de poupança adicional com juros, o acréscimo face ao que hoje já ocorre, diz respeito apenas aos 10 mil milhões de euros adicionais).
A diferença entre 875 milhões de euros e 350 milhões de euros é grande. Mas se ficou desiludido, fica já outro aviso: o valor de poupança será ainda menor. É aqui que chegamos à mutualização dos lucros.
Limite de distribuição de juros
Se o banco central distribuísse a totalidade (ou quase totalidade) dos juros ao país, então os 350 milhões de euros seriam uma boa aproximação das poupanças. Mas essa não é a regra que o BCE acordou na sua reunião de Janeiro. Na verdade, os lucros obtidos com as compras deverão ser agregados e depois distribuídos de acordo com a chave de capital.
As implicações financeiras são grandes: neste modelo, o valor dos juros devolvidos a cada um dos Estados-membros corresponde ao seu montante da sua dívida no BCE remunerada a uma taxa de juro que é a média das taxas pagas pelo vários Governos (ver exemplo mais baixo para dois países que evidencia que os países de juros mais altos como Portugal financiam, por definição, os países de juros mais baixos).
Assim, assumindo que a taxa de juro média na Zona Euro (ponderada pelos volumes de compras) é metade da nacional (1,75% em vez de 3,5%) a poupança adicional com a dívida comprada ao abrigo do actual programa cai para metade: de 350 milhões de euros para 175 milhões de euros.
Se ainda levarmos em consideração que o Banco de Portugal (que recebe os lucros do BCE e depois os distribui ao Estado) deverá ficar com parte dos dividendos, o valor a abater à despesa com juros será ainda menor…
Exemplo de efeito de mutualização dos lucros pelo banco central
Hipóteses:
– Uma união monetária de dois países, um com 70% do PIB da região, o outro com 30%. A chave de repartição do capital, que define repartição de compras e de dividendos, é exactamente o contributo para o PIB [O BCE calcula a chave de capital também com base na população, mas para o efeito esta aproximação é boa].
– O país pequeno paga ao banco central uma taxa de juro pela sua dívida de 3,5% (a taxa de mercado no fundo). O país grande paga 1%.
– O banco central compra 100 mil milhões de euros de dívida e distribui a totalidade dos lucros com os juros aos Estados-membros da união monetária, repartidos pela chave de capital.
Ou seja:
– O país A paga ao banco central 700 milhões de euros em juros (1% aplicados aos 70 mil milhões de euros de dívida). O país P paga 1.050 milhões de euros (3,5% aplicados aos 30 mil milhões de euros de compras).
– O banco central devolverá a cada país os juros que arrecada (sob a forma de dividendos) de acordo a chave de capital, o que é equivalente a aplicar uma taxa de juro média ponderada das suas operações. Neste caso corresponde a 1,75%. Assim, o País A receberá 1.225 milhões de euros (apesar de ter pago 700 milhões) e o País P receberá 525 milhões de euros (apesar de ter pago 1.050 milhões).
– Conclusão: há na prática uma transferência de rendimentos do país P para o Pais A. A economia de juros mais altos acabará por financiar a de juros mais baixos, via banco central, o que faz sentido se os riscos (ou potenciais perdas) também forem repartidos pela chave de capital. Já com riscos nacionalizados a operação desafia a lógica financeira.
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