Parlamento Português Fonte: Mario Proenca/Bloomberg
O diagnóstico e o receituário da Troika continuam equivocados, focando o défice interno em vez do défice externo, a má governação dos devedores em vez das práticas de crédito fácil, para não dizer predador, dos credores.
Mariana Abrantes de Sousa, em PPP Lusofonia
O enquadramento de políticas postas em prática através de programas de ajustamento da UE/FMI é, na minha perspectiva, inconsistente e perigoso. A crise da dívida soberana europeia é, na verdade, uma crise da balança de pagamentos e de dívida externa
Ricardo Cabral, numa audiência no Parlamento Europeu (17 Out.)
A implementação do programa de ajustamento português vai de vento em popa, com mais uma aprovação na avaliação de sexta-feira. O Governo recebeu elogios e vinca que quer ir até mais longe que troika. O PS apoia em linhas gerais o memorando de entendimento – que nasceu de resto com o seu acordo – afastando assim Portugal das confusões políticas gregas ou italianas. Estas são boas notícias? Depende. Se o diagnóstico traçado pela troika e consequentes prescrições de política estiverem correctos, então, sim, são boas notícias. São até muito boas notícias. Mas, se, pelo contrário, o diagnóstico e as políticas forem as erradas? Bom, nesse caso, como diz Ricardo Cabral, trata-se de um caminho perigoso.
Numa esclarecedora entrevista que concedeu a semana passada ao Negócios sobre a situação orçamental e financeira nacional, Mariana Abrantes de Sousa, consultora financeira e especialista em PPP tanto pelo lado privado como público, deixa o aviso de quem leva uma vida a pensar sobre controlo financeiro: “pior que não ter os indicadores objectivos, é ter os indicadores errados”, afirmou, criticando o enfoque europeu – de Maastricht e do Pacto de Estabilidade e Crescimento – no desempenho orçamental, descurando os desequilíbrios externos.
“Os critérios de Maastricht têm de ser revistos por dois motivos. Primeiro focam a questão a errada – o nosso problema não é de dívida pública, mas de balança de transacções corrrentes. Por outro lado, criaram uma ilusão de disciplina orçamental, porque o défice até desce”, apesar do endividamento externo [o endividamento do sector publico alargado] aumentar, essencialmente à custa de PPP e empresas públicas.
Sob outra perspectiva, este é também um ponto central na análise de Ricardo Cabral, professor na Universidade da Madeira, que há umas semanas apresentou perante o Parlamento Europeu a sua visão sobre os programas de ajustamento da troika . Ao Negócios, Cabral diz que há “um diagnóstico errado da crise: [na troika] consideram que a crise é de natureza orçamental e não uma crise de balança de pagamentos”. Ou seja, a crise europeia é essencialmente um problema de diferenciais de competitividade e de acumular de endividamento externo, os quais não são suficientemente cuidados no programa de ajustamento, o qual se centra essencialmente na redução do défice público:
“A troika não relaciona o défice comercial com o défice público, entre outros aspectos, por razões políticas – isso seria apontar parte das responsabilidades ao Pacto de Estabilidade e Crescimento e aos países exportadores e, além disso, obrigaria a políticas nos países periféricos que penalizariam os países exportadores (que são também os países credores). E continua: “Em alternativa, os países exportadores poderiam implementar políticas expansionistas (direccionadas para os países periféricos), opção que também não é bem vista nesses países”.
Pior que não ter o diagnóstico objectivo, é ter o diagnóstico errado, poderia dizer Ricardo Cabral, parafraseando Mariana Abrantes de Sousa. E sobre o mau diagnóstico, o professor na Universidade da Madeira não esgota os argumentos nas relações de economia política associada aos programas de ajustamento. O problema tem também muito a ver com a forma como as universidades não treinam os alunos a pensar sobre o todo da economia e, especificamente, sobre a forma como o défice orçamental e o défice externo se relacionam:
“Não é essa a forma que se aprende/ensina a abordar problemas de índole orçamental nas universidades. Com frequência essas temáticas são abordadas em disciplinas diferentes (e.g., finanças públicas para défice orçamental e macroeconomia para balança de pagamentos). Em resultado a óptica adoptada no tratamento de desequilíbrios orçamentais é, na prática, microeconómica [ignorando-se a dimensão macroeconómica que é fundamental]. Por exemplo, nos EUA, no actual debate de redução do défice público desse país, discute-se apenas cortes de despesas (e programas) e aumentos de impostos, sem qualquer referência ao défice comercial e às necessidades líquidas de financiamento da economia. É verdadeiramente inacreditável que assim seja, mas é o que continua a ocorrer”
No centro da argumentação de Ricardo Cabral está uma igualdade macroeconómica fundamental: (soma das necessidades de financiamento público e privado) = (soma dos défices comercial e rendimentos) – ver página 3 da apresentação ao Parlamento. Daqui decorre que, sem resolver os problemas de défice externo (através de uma reestruturação da dívida externa e de políticas centradas na redução do défice externo e não apenas na depressão de toda a procura interna) não será possível resolver, de forma eficiente, o problema de défice orçamental (já que, nesse caso, uma redução do défice orçamental implicará um aumento do défice privado, mantendo Portugal numa situação macroeconómica insustentável). Resumindo: o programa de ajustamento dificilmente funcionará, diz o economsita, e este é um aviso que chega também de Mariana Abrantes de Sousa:
Para salvar o Euro é necessário re-equilibrar a competitividade entre os países da Zona Euro. É necessário cortar as importações gregas e portuguesas o que implica cortar as exportações alemãs e francesas. Não haverá saída da crise de balança de pagamentos se não houver redução dos défices e dos superávites comerciais dentro da Zona Euro. E neste capítulo, ainda não vislumbram medidas praticamente nenhumas, pois o diagnóstico e o receituário da Troika continuam equivocados, focando o défice interno em vez do défice externo, a má governação dos devedores em vez das práticas de crédito fácil, para não dizer predador, dos credores.
E se a troika estiver mesmo errada? Bom, então as análises de Mariana Abrantes de Sousa e Ricardo Cabral apontam para anos muito difíceis, escusados, e no limite infrutíferos. É por isso que o Governo e os três partidos no Parlamento que apoiam o memorando de entendimento deveriam fazer um esforço muito maior por explicar o plano de ajustamento que está em curso, porque é que é melhor que as alternativas, e claro, em que fundamentam o seu apoio às opções inscritas no memorando.
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