O Governo justificou o corte salarial no Estado com um estudo do Banco de Portugal que estima que os funcionários públicos ganham, em média, mais 15% que os trabalhadores no sector privado, já levando em consideração o nível de formação médio e as funções desempenhadas. É verdade? É. Mas o trabalho do Banco de Portugal não cauciona de forma alguma (este tipo de) corte salarial. Porquê? Porque a a distribuição salarial no Estado é muito heterogénea: com as reduções salariais de 2011 e 2012 os licenciados em Economia, por exemplo, ficarão a ganhar, em média, menos 50% no Estado do que no sector privado. Os juristas idem. Isto porque algumas das profissões centrais para a boa condução da Administração Pública (dirigentes incluindos) experimentavam, ainda antes dos cortes, prémios salariais negativos face ao sector privado que ultrapassam os 20%.
Este é um daqueles casos que lembram, por um lado, o anedotário popular sobre médias como medida de distribuição de rendimento, e por outro, o famoso provérbio “com a verdade me enganas”.
Pegando no estudo do BdP (publicado por Maria Manuel Campos e Manuel Coutinho Pereira em 2009, depois de uma primeira abordagem de Pedro Portugal e Mário Centeno em 2001) é difícil argumentar que a investigação na Almirante Reis caucione a decisão de cortar os salários, por igual, a toda a Administração Pública.
Eis algumas características da tabela salarial do Estado:
1) Há de facto um prémio salarial médio face ao sector privado, mas que esconde uma distribuição salarial com assimetrias significativas. O Estado remunera relativamente bem as profissões menos qualificadas, mas mal algumas das mais valiosas. Pedro Pita Barros, por exemplo, fez uma análise aos artigos evidenciando, entre outras características, que o prémio salarial na função pública cai à medida que os salários sobem, e também que, com os cortes agora anunciados, o prémio salarial no Estado vai desaparecer, tornando-se mesmo negativo;
2) Especificamente entre licenciados, o BdP sublinha que o Estado remunera particularmente mal algumas das profissões mais valiosas para o funcionamento da Administração Públicas que têm concorrência no sector privado. Veja-se a tabela seguinte sobre prémios salariais dos licenciados:
Nas profissões predominantemente públicas estão aquelas em que “o sector público é o empregador predominante em Portugal embora também existam no sector privado, o que inclui os médicos, enfermeiros, professores universitários e professores do ensino básico e secundário” (estão excluidas as profissões que só existem no Estado, como forças de segurança). A “segunda categoria abrange as profissões bem representadas em ambos os sectores, nomeadamente, dirigentes, engenheiros e especialistas das ciências da vida, pessoal da informática, juristas e advogados, especialistas das ciências sociais e economistas”. E os “não especialistas” são “os licenciados licenciados em ocupações de nível intermédio, desempenhando funções técnicas e administrativas ou relacionadas com os serviços directos” escrevem os autores.
Assim, em 2005:
a) Os licenciados economistas recebiam, em média, menos 36% a trabalhar no Estado do que no sector privado. Os juristas recebiam menos 26% no Estado, e os dirigentes menos 23%. Isto significa que, somando o corte médio de 5% em 2011, e os cerca de 14% de 2012, algumas das profissões ficarão com um prémio negativo de 50% face ao privado.
b) Com prémios salariais positivos entre licenciados estava apenas o grupo das profissões “predominantemente públicas”, entre eles os professores e médicos, embora aqui o BdP faça uma ressalva: “O elevado nível do prémio calculado para as profissões predominantemente públicas pode ser um indicador de que as mesmas não são totalmente comparáveis entre os dois sectores. Com efeito, existem trabalhadores do sector público nas áreas da saúde e do ensino superior que desempenham funções particularmente exigentes em termos de qualificações, as quais não têm correspondência no sector privado”
Aqui ficam as conclusões nesta frente de de Maria Manuel Campos e Manuel Coutinho Pereira:
O resultado mais saliente que se retira do quadro é o elevado nível do prémio, avaliado na média, associado às profissões em que o sector público é o principal empregador, contrastando com uma penalização para as profissões em que o emprego é repartido pelos dois sectores. Esta última penalização é particularmente acentuada para as ocupações mais procuradas no sector privado, como é o caso dos engenheiros, especialistas da informática e economistas.
No caso das profissões nas quais ambos os sectores são empregadores importantes verifica-se uma penalização, a qual indicia pouca capacidade por parte da Administração Pública para atrair os trabalhadores que as desempenham. Pelo contrário, o prémio é particularmente alto em áreas como a saúde e a educação, nas quais o sector público é o principal empregador, o que em parte reflecte o forte poder negocial dos funcionários públicos nestas áreas.
Em 1999, a penalização para estas profissões rondava os 20 por cento e, apesar de uma atenuação nos anos mais recentes (…) apresenta ainda um valor considerável em 2005, sugerindo uma deficiente capacidade do sector público para recrutar ou manter os trabalhadores mais qualificados nestas áreas. Mais ainda, nesta análise foram consideradas apenas as remunerações de carácter regular, sendo de esperar que compensações em espécie e outros benefícios tenham particular relevância no sector privado.
Não é por isso possível, com base neste estudo, defender um corte salarial nas funções mais especializadas no Estado como decidido pelo Governo. Como se vê, os 15% são uma média verdadeira, mas enganadora. Mas não são todas.
- Carlos Costa e o colapso do BES. Negligente ou injustiçado? - 23/03/2017
- Os desequilíbrios excessivos que podem tramar Portugal - 21/03/2017
- A década perdida portuguesa em sete gráficos - 15/12/2016