Ontem, a RTP promoveu um debate sobre o acordo com a troika, que contou com Eduardo Catroga (PSD), Pedro Silva Pereira (PS) e António Pires de Lima (CDS). Antes, na TVI, degladiaram-se Paulo Portas e José Sócrates em entrevista. Nos dois confrontos o essencial dos argumentos repetiu-se: o PS promoveu um inexplicável aumento da dívida pública que arrastou o país para a bancarrota, diz a direita; a crise internacional, promovida pela irresponsabilidade dos mercados, forçou à actuação dos Estados, gerando aumentos de dívida pública em todo o mundo, sendo especialmente madrasta para os países periféricos do euro, responde o PS.
Este é um debate confrangedor. Como é evidente, o principal problema português não é o elevado nível de dívida pública, nem essa é a principal fraqueza nacional (como aliás a própria troika o admite). Mas já vamos a essa parte: antes, os números sobre o endividamento do Estado.
É verdade que a dívida pública subiu devido à crise financeira, subiu em todo o mundo e subiu muito. Mas também é verdade que Portugal se destaca na Zona Euro pelo expressivo aumento de 30 pontos percentuais entre 2007 e 2010 no peso da dívida do Estado no PIB (de 63% para 93%), uma variação apenas superada pelas da Grécia e Irlanda (a Espanha vem logo a seguir):
Variação em pontos percentuais do peso da dívida pública no PIB entre 2007 e 2010
Fonte: Comissão Europeia
O PS argumentará, com razão, que a crise foi mesmo mais madrasta para os países periféricos – cuja pequena dimensão os torna propensos à volatilidade – ditando-lhes recessões mais severas e difíceis de gerir dados os desequilibrios internos e europeus.
Bem mais difícil de explicar é a forma (pelo menos aparentemente) descontrolada com que o aumento de endividamento aconteceu.
Com a equipa Teixeira dos Santos e Emanuel dos Santos no volante, o défice orçamental de 2009 derrapou de uns planeados 5,9% do PIB em Novembro de 2009 para 9,4%. No ano seguinte (2010), o objectivo de 7,3% do PIB ficou nos 9,1% oficiais. Num contexto de elevadíssimo risco e sensibilidade de mercado, estas derrapagens (mesmo que parcialmente explicadas pelo BPN e opções metodológicas) não têm desculpa aos olhos dos investidores – ainda por cima se Portugal passar a ser um dos mais endividados da Zona Euro, como aconteceu. O preço a pagar foi elevado.
Vitória, portanto, dos argumentos do PSD e CDS? Dificilmente.
É certo que no ano passado Portugal ultrapassou, pela primeira vez em muitos anos, o endividamento público médio da UE (barreira psicológica até agora muito usada pelo Governo). Mas será este o elemento decisivo para a situação de pré-bancarrota em que Portugal caiu? Não.
Peso da dívida pública no PIB em 2010 na Zona Euro
Fonte: Comissão Europeia
Os últimos dados oficiais mostram que Portugal tem um “stock” de dívida pública inferior ao belga e ao italiano, muito inferior ao grego e próximo do irlandês – mas sem um sistema financeiro esfrangalhado. O que torna então Portugal tão arriscado?
A dívida externa privada portuguesa supera largamente a espanhola, a grega ou a italiana, competindo perdendo apenas para a irlandesa – onde o rebentar de uma enorme bolha financeira e imobiliária levou à nacionalização total da banca. Esta conjunção mortífera de baixo crescimento económico com elevado endividamento privado persegue o País há demasiado tempo e torna matematicamente impossível pagar dívidas. E é por isto que o debate entre PS e PSD se torna confrangedor: não discute o essencial e no essencial ambos falharam.
O maior problema português não é a dívida pública, mas sim o colapso de um modelo de desenvolvimento e crescimento que foi sendo construido ao longo de mais de trinta anos. Um colapso que se explica (provavelmente em primeiro lugar) pelas muitas fragilidades do sector privado, mas que é ao mesmo tempo um atestado da ineficácia das políticas públicas adoptadas por líderes como Pedro Silva Pereira e Eduardo Catroga, como Durão Barroso e António Guterres, ou como Mário Soares e Cavaco Silva.
Este falhanço colectivo foi aliás por várias vezes mencionado pela troika, que não se cansou de sublinhar a baixa taxa de crescimento em Portugal, salientando aliás que se há distinção entre os programas de ajustamento nacional e os grego e irlandês, ela está na preponderância em Portugal de reformas ditas estruturais e promotoras de crescimento.
Nota final: Num determinado momento do debate de ontem António Pires de Lima, o negociador do CDS-PP, anuncia as suas dúvidas sobre a privatização da RTP (como admitido pelo PSD), argumentanto com a importância do canal público de televisão para salvaguardar a pluralidade de opiniões. O debate “depois do acordo” não tinha qualquer membro do PCP ou do BE.
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