Nota editor: João Galamba, do Jugular, aceitou o convite do massa monetária e, até ao final de Fevereiro, publicará os seus posts também nesta casa.
A chamada crise da dívida soberana é uma ficção política com um objectivo muito claro: permitir manter a ilusão de que, salvo alguns ajustamentos pontuais, a arquitectura institucional da zona euro está, na sua essência, correcta. Isto permitiu transformar um sintoma – a desconfiança dos mercados em relação à solvabilidade dos países periféricos, que se reflectiu numa subida do seu custo de financiamento – na causa do problema: porque os países periféricos quebraram os seus compromissos, estão a ser justamente penalizados e têm de mostrar, através da sua própria vontade, que são capazes de inverter a situação e recuperar a confiança dos mercados.
E assim se montou uma farsa. Os países periféricos implementam sucessivos pacotes de austeridade para recuperar a confiança do mercados; os governos europeus (apenas) aplaudem; e os mercados, que até se entusiasmam com a aparato imediato da coisa, logo se apercebem que, economicamente, nada disto faz muito sentido. E voltamos ao ponto de partida. Com uma agravante: o problema agrava-se e ameaça alastrar a grande parte da zona euro.
Devia ser óbvio para todos que um plano B que se limite a ser uma versão reforçada de todos os planos A anteriores falhados não pode funcionar. Num contexto fortemente recessivo como aquele que vivemos, forçar os países periféricos a pôr em prática uma política deflacionárias aumenta a probabilidade de default, o que amplia o problema o inicial. Achar que esta estratégia alguma vez poderá conquistar a confiança de quem quer que seja implica passar um atestado de estupidez aos mercados.
Como disse Teixeira dos Santos 'Portugal tem vindo a fazer o seu trabalho de casa e esperamos que a Europa seja também capaz de fazer o seu trabalho para nos dotar de instrumentos comuns e adequados para fazer face às dificuldades'. Quem diz Portugal diz a Grécia, a Irlanda e a Espanha.
Como na crise financeira de 2008, importa perceber que só a vontade política – e não qualquer tipo de mecanismo de mercado – pode resolver problemas de natureza sistémica. A reforma da arquitectura institucional da zona euro, de modo a que seja possível os devedores pagarem as suas dívidas sem destruírem a sua economia e sem sujeitarem as suas populações a um processo deflacionário insustentável numa democracia europeia moderna, não é uma opção, é uma necessidade. Não de pedir ajuda ou a caridade dos credores, antes o reconhecimento de que, a longo prazo, essa é a única opção que satisfaz os seus próprios interesses.
Num certo sentido, é preciso reconhecer que, se quisermos manter a moeda comum, a dívida dos países periféricos tem de ser tratada como uma espécie de capital, pois os credores só poderão recuperar o seu dinheiro se investirem na viabilidade e no futuro económico dos devedores. Não como se de accionistas se tratassem, mas como parceiros políticos num projecto económico comum que é o euro.
A crise da dívida soberana é na realidade a crise da união monetária. Ou melhor, é confirmação prática que o euro não só não tem instrumentos para lidar com uma crise assimétrica, como, na sua configuração actual, contribui para o seu agravamento.
João Galamba, Jugular
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