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O texto que vai seguir-se, tal como todos os que forem aqui colocados sob o mesmo título, está publicado na colecção “Os Anos de Salazar”. Quem não tiver paciência para minudências, é a..." /> Os anos de Salazar (1) - Variação Contínua - Record

Variação Contínua

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Os anos de Salazar (1)

29 Setembro, 2014 1218 visualizações

O texto que vai seguir-se, tal como todos os que forem aqui colocados sob o mesmo título, está publicado na colecção “Os Anos de Salazar”. Quem não tiver paciência para minudências, é avançar para locais na internet com temas muito mais interessantes.

Baptista Pereira venceu a travessia do Canal em 1954

UM CROCODILO NA MANCHA

A estreia de Joaquim Baptista Pereira na Travessia da Mancha, em 21 de Agosto de 1954, marcou de forma indelével uma época do desporto nacional e ficou para a História como uma das maiores proezas, talvez mesmo a maior, alguma vez assinada por um nadador português. Nesse ano de 1954, quando o país ainda lamentava a derrota frente à Espanha no Mundial de hóquei em patins e a consequente perda do título de campeão, o orgulho lusitano encontrou novos motivos de exaltação na figura do “crocodilo”, como o jornal “Record” carinhosamente o tratava numa alusão ao triunfo na descida do rio Nilo, em Dezembro de 53.

Considerado internacionalmente um dos melhores fundistas da natação do início da década de 50, como provam os resultados e os convites para participar em provas nos Estados Unidos, França ou Itália, Baptista Pereira estreou-se na travessia do Canal da Mancha e fez o pleno. Não só completou o desafio, ainda hoje um dos mitos da natação em águas abertas, como foi o mais rápido entre os 15 participantes de 12 países diferentes.

O português fez o trajecto França – Inglaterra, ligando Cap Griz Nez a Dover, em 12 horas e 25 minutos, marca acima do recorde da altura (10h52m, registado em 1950 pelo egípcio Rheim) mas suficiente para garantir o triunfo. Curiosamente obtido sobre outro nadador egípcio, Hassam Hamad, que fazia a 4.ª tentativa e já tinha vencido em 1951. Desta vez seria 2º, com mais 24 minutos do que o português. O Egipto tem, aliás, uma história interessante na lenda da Mancha. Entre os 15 adversários de Baptista Pereira nessa “Butlins Race” de 1954 estavam nadadores egípicios que, à época, passavam temporadas do lado inglês, em Folkestone, treinando com um único objectivo: atravessar o Canal. O “crocodilo” estava, também por isso, em desvantagem. Não só era estreante, como tinha adversários mais adaptados aos obstáculos a ultrapassar.

“Foi a prova mais difícil da minha vida”, diria à reportagem da BBC, emitida em português, algum tempo depois de terminada a travessia. A frase, ainda sem a emoção das declarações posteriores, onde saudava a mulher, os filhos, e onde dedicava a vitória aos “amigos e a Portugal”, pode parecer banal, óbvia. Mas o mito criado em 1875 pelo capitão inglês Webb – primeiro a fazer a travessia – encerra segredos que continuam a motivar nadadores de todo o planeta.

A PREPARAÇÃO

“Difícil não é fazer a prova. É prepará-la”. A afirmação de José Maria Antunes, conselheiro de Baptista Pereira, recolhida logo após o resultado do nadador de Alhandra, sintetiza ainda hoje um dos tais segredos da Mancha. O desafio passa por nadar cerca de 35 quilómetros – a menor distância entre França e Inglaterra – maioritariamente em alto mar, com tudo o que tal significa em termos de agitação da água e naturais mudanças de temperatura. A preparação, o treino, são por isso essenciais.

A cerca de um mês da prova, Baptista Pereira arrancou um 9º lugar na maratona de Atlantic City e os portugueses duvidaram das possibilidades do compatriota. Afinal, antes da viagem para os Estados Unidos, o fundista tinha feito dois treinos (Póvoa de Santo Adrião – Carcavelos) e em ambos não conseguira o objectivo de nadar até… Cascais. As desistências como que despertaram a tradicional tendência nacional para a descrença. O “Gineto”, como também era conhecido, tinha no entanto plena consciência do trabalho que estava a fazer e confiança no método adoptado. Afinal, em 30 de Maio de 54 ligara o Terreiro do Paço a Vila Franca de Xira, cumprindo os 35 quilómetros do percurso em 7 horas e 2 minutos, ao fantástico ritmo de 55 braçadas por minuto. No mês seguinte, a primeira travessia Peniche-Berlenga voltara a mostrar um Baptista Pereira em grande forma. O jornal Record acompanhou a prova, relatou as 4horas e 38 minutos gastas no percurso de 16 quilómetros e revelou ritmos que chegaram às 72 braçadas por minuto.

A prova norte-americana – um convite da organização, “subsidiado pelo Governo português e por particulares” – podia ter resultado num modesto 9º posto, mas sabia-se que havia 33 nadadores em prova. Ainda assim, os portugueses duvidavam. Circunstâncias posteriores viriam a atribuir a Atlantic City o estatuto de último grande teste de Baptista Pereira antes da Mancha. Algo que os especialistas em natação da altura, desdramatizando a classificação obtida, entendiam como… lógico. A forma estava lá, bastava agora mantê-la até dia 21 de Agosto.

OS ROCHEDOS BRANCOS DE DOVER

“Parti à meia noite e trinta e apanhei água fria”, contou o nadador português pouco tempo após sair das águas e pisar os alicerces naturais da muralha branca de Dover. “No início o mar estava bom e depois encapelou, mas o problema maior foi andar perdido e às voltas à procura do barco de apoio. Fui ultrapassado por alguns adversários, mas assim que encontrei o barco, lancei-me na perseguição e consegui ultrapassá-los”. À distância de mais de meio século, a descrição de Baptista Pereira aos microfones da BBC dá apenas uma ténue imagem de uma aventura de quase 12,30 horas dentro de água com temperaturas entre os 12 e os 13 graus.

O repórter Augusto da Silva, estrategicamente colocado junto aos emblemáticos rochedos de Dover – final da travessia –, descreveu as reacções da população que esperava os nadadores, deu conta dos gritos “Baptista won!” (“Baptista ganhou”) e da agitação que se seguiu ao final da prova. Com o português a receber felicitações, beijos de mulheres inglesas – “Isso aqui é costume”, diria o fundista de Alhandra – e a merecer a atenção de fotógrafos e operadores de câmara. Pereira ficaria longe do recorde da travessia, mas ganhou a prova. Organizada nesse ano pela Federação Internacional de Longas Distâncias e por um clube de natação de Folkestone. A “Butlins Race”, assim denominada, sucedeu em 1954 às travessias organizadas pelo jornal “Daily Mail”, mas os registos oficiais ingleses não têm o nome do português, assinalando apenas o 2º posto do egípcio Hassan Hammad — muito por força das tais equipas de nadadores do Egipto que passavam temporadas em Folkestone.

No regresso, Alhandra e o País receberam condignamente o herói. Dª Maria Antónia, a mulher de Baptista Pereira, diria aos jornalistas que o marido cumpriu o que prometera. “Quando partiu para a América para disputar a Maratona de Atlantic City confidenciou-me que não estava seguro de vencer [na Mancha], mas que havia de fazer o possível por honrar Portugal”.

O feito do nadador nascido a 7 de Março de 1921 mereceu, da parte do Regime, o devido apreço. A exaltação da Raça veio pelas mãos do Presidente da República. Craveiro Lopes condecorou Baptista Pereira com a “Medalha de Mérito Desportivo”, divulgando-se o momento para publicação fotográfica nos jornais. Há, no entanto, outra imagem marcante nesse início de Setembro de 1954: uma foto no jornal Record mostra Pereira a passar um papel para as mãos de Maria Antónia. A legenda: “Com um sorriso feliz entrega a sua esposa o cheque de 500 libras”. Nada mais esclarecedor como símbolo e como mensagem — bom chefe de família [teve 3 filhos], o nadador entrega o prémio da vitória na Mancha à mulher, para que seja esta a gerir o orçamento familiar.

Pormenores, apenas, na vida de alguém que marcou uma época no Portugal dos anos 50. Baptista Pereira voltaria à Mancha em 1959, ano em que registou outra proeza – o recorde europeu de permanência na água, completando 206 quilómetros em 28 horas e 43 minutos.