A “verdade desportiva” em formato 16:9
A bem dizer sou adepto das “novas tecnologias”. Programar o GPS num automóvel para um percurso de 124 quilómetros, cumprindo cada “way point” para que o sistema possa apontar ao seguinte e assim sucessivamente até ao local de chegada é bom exemplo. Escrever este texto num teclado virtual, sem ruído, sem papel a sair da máquina, é outro. Poderia estar nesta coisa dos exemplos por muitos e muitos caracteres, mas quem vem da era do canal único de tv a preto e branco, do telex e do telefone fixo não pode dar-se a esse luxo. Para tal há a senhora simpática daquele anúncio do “eu ainda sou do tempo…”, e a urgência é o futuro. Que voltou à agenda (volta sempre à agenda, o futuro) no caso das “novas tecnologias” aplicadas ao futebol.
Vou descontar o sentido de oportunidade exibido pelo extraordinário presidente do Sporting. O roubo de Gelsenkirchen foi isso mesmo e não vale a pena alimentar ainda mais a eterna teoria da cabala que o clube de Alvalade parece carregar, qual cruz na Via Dolorosa a caminho de Gólgota. Não é necessário. E para sofrimento basta o que basta na vida real dos impostos, do desemprego, da insensibilidade, enfim, deste canto ali a meio caminho entre as tágides e o desígnio do Mar.
Estão, ao que parece, muitos milhares de acordo com a urgência em utilizar as imagens da transmissão televisiva para acabar com o erro no futebol. Uma espécie de primado do 16:9, sistema que rivalizará com o 4x4x2, blocos baixos, ou até com as fantásticas basculações, transições e outras palermices do género. Não se trata de, em um defesa falhando um passe que isola o avançado adversário, mandar parar o jogo a fim de corrigir o toque na bola. Claro que não, o alvo é a decisão da equipa de arbitragem, qualquer que ela seja. A decisão ou a equipa de arbitragem, entenda-se. À distância da improbabilidade que algo do género venha a ser aplicado nos anos mais próximos, vale a pena perguntar pela agora muito em voga cláusula de salvaguarda.
A Portugal ainda nem sequer chegou a latinha de creme de barbear, usada pelo árbitro em jeito de cinturão, coldre e colt 45, e as almas bem intencionadas já imaginam jogos interrompidos para concluir se foi bola na mão, mão na bola ou apenas bola na cara ou noutra parte não sancionável do corpo. Admitindo que os meios técnicos e tecnológicos para o efeito passam a nascer mais depressa e mais baratos do que o ervado do estádio de Monte Carlo, restam as cláusulas de salvaguarda.
Quando é que há direito a visionar as imagens? Sempre que há dúvidas? Só dúvidas na área? Só dúvidas nas infracções técnicas ou também nas disciplinares? Para que serve o árbitro no terreno se depois de apitar e surgir a confusão habitual, o “visionador” (quem é e com que autoridade no tempo de alerta?) contribuir para a alteração da decisão inicial? As equipas também estão representadas junto do “visionador” ao longo do jogo? Não estando, mas porque uma delas viu outra coisa ou foi alertada via telecomunicações, quantas vezes pode pedir interrupção para consulta do “meio audiovisual?” Duas por jogo? Quatro sem limitação, ou duas em cada parte? 20? Vai o jogo inevitavelmente passar a 100 minutos, sem incluir outras interrupções? Quem confirma a”verdade” ditada pelo visionamento? Só o árbitro ou este e os capitães de equipa? Os treinadores? Os delegados ao jogo? A transmissão televisiva passa a lei?
Haveria muito mais do dobro das perguntas, mas falta paciência para continuar. Até porque não há uma alminha, uma só, que saiba responder a qualquer delas. Estamos naquela fase habitual da prosápia e do verbo inócuo. Assim tipo “o país precisa de crescimento económico”. Como? Ninguém sabe, com ou sem factura.
Claro que a conversa da “verdade desportiva”, da importância das competições, da exposição mediática dessas mesmas competições, das verbas envolvidas, do “investimento”, defenderá sempre a entrada em cena destas “novas tecnologias”. Mas a questão é outra: o futebol é o Schalke 04 – Sporting, para a Champions, o Real – Barcelona para a liga espanhola, ou é também as dezenas de milhares de jogos dos distritais, das divisões não profissionais, dos escalões de formação? A verdade (desportiva), o apuramento da mesma, está apenas reservada aos poderosos, que põem e dispõem de outros meios? Até parece o sistema de justiça em Portugal.