A Maison Margiela tira a máscara para revelar John Galliano.
Com uma irrepreensível atenção ao detalhe, manchas selvagens de escarlate e uma decoração intensa sobre silhuetas de alfaiataria, John Galliano regressou às passerelles.
O reconhecido criador, caído em desgraça pelos seus comentários antissemitas, surgiu por um micro-segundo num casaco branco de laboratório no final do seu desfile para a Maison Margiela, para agradecer o generoso aplauso enquanto as modelos desfilavam ao som do tema “Hey, big spender” – talvez um toque de ironia para a sua primeira apresentação de couture na nova estação.
Os colegas, amigos e fãs do designer estavam dispostos a perdoar, até esquecer, e a excelência pura e originalidade da obra de Galliano trouxe um apreciado aplauso de Kate Moss, que confessou “Aquele vestido vermelho deu-me arrepios”; de Alber Elbaz da Lanvin, que enviou ao criador uma caixa de lápis de cor e de cera; e de Manolo Blahnik, que decididamente não foi o fornecedor dos sapatos plataforma cujos saltos estavam esculpidos como dentes de um gigante.
Havia algo de cru e animalesco num look onde olhos 3D brilhavam na cintura ou um top que lembrava os restos no fundo de uma gaveta de uma Rainha. Uma coroa e dentes completavam esse visual.
Ainda assim, de alguma forma, no meio das formas estranhas e restos – presumivelmente, um aceno à ideia de Margiela de reciclar – havia uma elegância doce. Outro simples vestido em veludo vermelho, recortado em espaços reveladores de curvas e pele, atrás, colocou a audiência a suspirar, com Natalie Massenet do Net-a-Porter a ser a primeira a clamar os seus méritos e a demonstrar o desejo de tê-lo.
Depois, havia aquelas calças de fato pretas, minimalistas, mas sedutoras. Sendo tudo isto assinado por Galliano, muitas peças tinham uma mensagem sexual, como um vestido preto, recortado, que revelava o tipo de micro-calções que acompanhariam Kate Moss ao Glastonbury.
E logo quando pensávamos já ter visto tudo, surgem vestidos de noite elegantes com chiffon esvoaçante e transparências justas que levaram o público de volta aos dias de Galliano na Dior.
Sem medir o quanto deste show tinha de Galliano e quanto tinha da marca Margiela, ambos estavam decididamente presentes.
“Nuncia vi nada como isto na vida – todos os looks contam uma história e estamos a trabalhar há já 6 meses… tanto tempo em cada um”, disse Renzo Rosso da Diesel, cuja empresa apropriadamente denominada ‘Only the Brave’ está por detrás da maison Margiela, bem como da Marni e Viktor & Rolf.
Para os que de nós viveram os grandes anos de tanto Galliano como da Margiela, as memórias ameaçaram submergir a realidade deste desfile que aconteceu no ultra-moderno edificio envidraçado em Londres.
As minhas primeiras memórias de Margiela foram num aterro nos limites de Paris, onde uma multidão de curiosas crianças do Norte de África se juntaram para ver o seu show de roupas – todas apresentadas dentro dos seus plásticos de lavandaria.
Para Galliano foi Les Incroyables – os habitantes da Moda da Revolução Francesa dos 1790s – roupas de uma selvagem e fantástica loucura que fizeram parte do seu desfile de final de curso em 1984, que foi colocada à venda de imediato na loja Browns.
Martin Margiela – belga, sério, a antítese da extravagância e exibicionismo – é o primeiro designer de que me lembro a falar de reciclar no limiar da opulência e extravagância que foram os anos 80. Um dos seus desfiles foi até feito num mercado de segunda-mão, interior, e acho que os fatos que apresentou eram reciclados dos tweeds do seu pai ou avô.
Galliano, de origem espanhola, lembrou-se de uma makeover na Dior inspirada nos sem-abrigo nas margens do Sena. A perícia das mãos dos artesãos usadas para criar roupas que pareciam já usadas e destruídas causou revolta em Paris.
Todos nós que se lembravam de John quando era ele próprio um pouco fora da caixa, mas conseguia fazer magia do nada – há 21 anos atrás, quando São Schlumberger, a amante de arte e socialite portuguesa, emprestou a Galliano a sua mansão vazia em Paris. John, com a sua musa da altura, Amanda Harlech, criaram uma apresentação feérica de uns quantos coordenados à volta de um estilhaçado candeeiro, no chão de uma piscina como um símbolo de sonhos destruídos.
Em 1995 – há 20 anos atrás – Galliano era já diretor criativo da Givenchy e continuou depois na Dior a fazer a sua magia extravagante. os coordemados pelos quais o criador fazia uma vénia todas as estações faziam parte de uma passerelle teatral.
Entretanto, Martin Margiela, a sua cabeça coberta por um gorro, era maioritariamente invisível e sempre silencioso (apesar de, para minha vergonha, me tenha uma vez criticado por tê-lo citado mal). Os shows eram cerebrais, inventivos, sucessivamente brilhantes – como os shows gémeos em preto e branco, em locais diferentes, um no escuro e o outro à luz da vela.
O talento de Margiela nunca foi desprezado – ele apenas se afastou da empresa depois de Renzo Rosso a ter comprado e o deigner sentiu que não tinha nada mais a dizer.
Galliano pode não ter muito mais a acrescentar, também. Mas o que mostrou em Londres foi uma poderosa mistura de beleza, provocação de baixo nível e a perícia e dotes que acumulou ao longo dos anos.
Numa era em que a Moda está em recessão, como uma onda de monotonia que continua a andar para a frente, o regresso de John Galliano à passerelle deve ser visto como bem-vindo por qualquer pessoa que ame a glória do extraordinário.