Dois pés em bronze dourado – uma da Roma antiga, outro de Henri Matisse – competem por atenção contra palmilhas, o peito do pé de uma bailarina e os dedinhos minúsculos de um bebé que dá os seus primeiros passos.
Percorri uma pista de testes sobre o pé humano e a sua função em Equilibrium, uma fascinante exposição no Museu Salvatore Ferragamo, em Florença.
Como estava a sofrer com o peito do pé inchado e ligado depois de ter dado uma queda dos meus sapatos de cunha em Capri, no desfile de alta costura de Dolce & Gabbana, sentia-me particularmente sensível ao pé e à sua função.
Contudo, não é preciso cair de um penhasco para apreciar esta exposição erudita, mas provocante. Ri-me ao ver os nossos antepassados, os primatas, como modelos peludos gravando no solo as pegadas por si deixadas em África há 3,6 milhões de anos.
Senti as lágrimas virem-me aos olhos quando vi os minúsculos sapatos em pele de bezerro com sola anti derrapagem feitos por Salvatore Ferragamo em 1946 para o seu filho Ferruccio, atual presidente do negócio da família.
Fiquei igualmente maravilhada com as figuras acrobaticamente penduradas num espaço vazio, a fazer lembrar os mobiles de Alexander Calder e a sua inspiração circense. Mas estremeci quando vi e ouvi alguns famosos registados em filme: a passada decidida de John F Kennedy, a marcha religiosa de Mahatma Gandhi e o passo militar sincopado de Adolf Hitler.
Acima de tudo, Stefania Ricci, a diretora e arquivista do museu e o crítico de arte Sergio Risaliti, co-curadores de Equilibrium, deveriam ser aplaudidos pelos impressionantes objetos de arte e as referências que reuniram, vindos de museus de todo o mundo. Entre eles, inclui-se uma ilustração da viagem de ADivina Comédia de Dante, cedida pela Biblioteca Nazionale Centrale de Florença, e esculturas de Edgar Degas do Musée d’Orsay, em Paris.
Especialmente tocante é a secção de dança, onde a delicadeza das bailarinas descalças de Degas ou um desenho a caneta e tinta quatrocentista de Raphael nos mostram os pés em estado de graça
Mas a alma e a sola dos sapatos é, evidentemente o próprio Salvatore.
“Ele passou a vida a estudar e a aprender sobre anatomia humana para melhor os seus conhecimentos do pé”, explicou Stefania Ricci, enquanto me mostrava os diferentes moldes trabalhados pelo designer para aprofundar o estudo científico do arco do pé.
Com os conhecimentos intuitivos de um italiano rodeado de arquitetura do Renascimento (na qual o arco suporta o peso do edifício), Ferragamo aplicou os mesmos princípios aos sapatos.
Marilyn Monroe, entre outras estrelas de Hollywood, pode ter sentido as vantagens dos estudos de Salvatore. No entanto, o equilíbrio volátil, sobretudo em saltos de diferentes alturas, evoluiu de um simples conhecimento científico, transformando-se numa forma de arte.
O “sapateiro das estrelas” sabia que o peso do corpo assenta todo sobre uma linha de prumo no arco do pé. Olhando para a fragilidade da figura de bronze de Alberto Giacometti “O Homem que Caminha”, partilhei a sensação do artista relativa à “fragilidade dos seres vivos, como se a qualquer momento fosse necessária uma quantidade de energia formidável para se manterem em pé”.
Em publicações anteriores, escrevi sobre os absurdos da moda dos saltos altos e interroguei-me por que razão as mulheres estavam preparadas para sofrer para serem “belas”. Os organizadores da exposição fizeram-me perceber o quão difícil é criar no calçado o “equilíbrio” concedido pela natureza – os músculos que movem o esqueleto e os neurónios que controlam a anatomia.
Mas o lado cientifico da exposição é tão leve como um bom par de sapatos de salto alto. Aqueles que quiserem aprofundar os seus conhecimentos, podem estudar o catálogo de Equilibrium e o seu resumo histórico magnificamente apresentado.
Amplamente ilustrado, o livro inclui o equilíbrio neo-clássico das bailarinas de Antonio Canova e os seus “ritmos de graciosidade”, as visões mais duras dos dedos distorcidos da bailarina avant-garde norte-americana Merce Cunningham, e a obra implacavelmente rígida esculpida em ametista Shoes for Departure (1991), da artista conceptual Marina Abramovic.
Espero que esta exposição viaje porque é muito mais significativa do que uma simples mostra de calçado – da mesma forma que Salvatore trouxe a arte, a ciência e uma inteligência superior para o seu, aparentemente humilde, ofício.