Gaspar meteu os pés pelas mãos nos multiplicadores do FMI?

16/10/2012
Colocado por: Rui Peres Jorge

 

Christine Lagarde, em Tóquio, nas reuniões anuais do FMI Fonte:Tomohiro Ohsumi/Bloomberg
 

 

Continua a polémica em torno dos multiplicadores orçamentais a partir das conclusões do FMI que apontam para que, no actual contexto, a austeridade roube mais ao crescimento do que se pensava – ou pelo menos do que o FMI pensava. As declarações desta semana do ministro das Finanças na apresentação do Orçamento do Estado foram ricas para alimentar o debate. A análise às declarações do ministro não lhe são favoráveis. Gaspar tem razão em defender que o FMI não advogou um alívio da austeridade em Portugal, mas falha em quase tudo o resto. O FMI defende que já suavizou as metas em Portugal nesta revisão (em linha com as conclusões a que chegou) e considera que os novos resultados moldam as suas recomendações (não não foi Paul Krugman a abusar de Olivier Blanchard e Lagarde). 

 

Resumindo o que disse o ministro: 1) Vítor Gaspar atribuiu as conclusões a Olivier Blanchard e não ao FMI, considerando que é aliás raro que as caixas publicadas no World Economic Outlook sejam assinadas; 2) Considerou que os resultados de Blanchard são fracos 3) e que a transposição dessas conclusões para decisões de política económica foi feita por Paul Krugman e não pelo próprio FMI 4) Gaspar diz que não estudou as declarações de Cavaco em Facebook – que transpõem as conclusões do estudo de Blanchard para a economia portuguesa, como Krugman fez para a norte-americana – mas considera que o FMI não inclui Portugal nos países em que se pode ponderar um ajustamento no ritmo de austeridade. Vejamos.   

 

1. Vítor Gaspar atribuiu as conclusões a Olivier Blanchard e não ao FMI, considerando que é aliás raro que as caixas publicadas no World Economic Outlook sejam assinadas

 

A fonte que é citada nos órgãos de comunicação social é uma caixa no World Economic Outlook, caixa essa que é de forma julgo eu sem precedentes, assinada pelos respectivos autores. Um dos autores dessa caixa é Olivier Blanchard, economista-chefe do FMI. A caixa é extraordinariamente cautelosa e não inclui uma conclusão para a posição institucional do fundo sobre a matéria.

 

Vítor Gaspar, conferência de imprensa a 15 de Outubro

 

Vítor Gaspar tem razão quando diz que a caixa é assinada por Olivier Blanchard, mas não que seja raro ter caixas assinadas. Na verdade, as caixas do WEO são por regra assinadas, como se pode consultar no site da instituição. Ter o economista-chefe do FMI a assinar uma destas caixas de análise dá peso às conclusões, em vez de lhes retirar peso. De resto, Blanchard é institucionalmente o responsável último por todo o WEO.

 

2) Considerou que os resultados de Blanchard são fracos e sensíveis a alterações temporais e a composição de países

 

A Caixa é extraordinariamente cautelosa e não inclui uma conclusão para a posição institucional do fundo sobre a matéria (…) Os resultados concretos [do WEO] não eram do nosso conhecimento, mas havia outra evidência empírica com bases dados do mesmo tipo que estava disponível. É importante reconhecer que esses resultados, que são obtidos por comparações internacionais são resultados frágeis no sentido em que são muito sensíveis ao período de análise considerado e ao conjunto de países que é retido na análise. As relações são pouco definidas e a evidência empírica é pouco conclusiva. 

 

Vítor Gaspar, conferência de imprensa a 15 de Outubro

 

O debate sobre a dimensão de multiplicadores orçamentais é antigo e tende a dividir correntes de economistas. Contudo, ao contrário do que Gaspar faz parecer é comum aceitar que os multiplicadores orçamentais são superiores à média (e aos 0,5% tidos como “normais”) quando as políticas de contenção orçamental são aplicadas ao mesmo tempo por vários países/regiões e em contexto de taxas de juro baixas.  A este respeito vale a pena ler por exemplo a análise de António Fatas

 

No entanto é verdade que não é só Gaspar que questiona a robustez dos resultados de Blanchard e do FMI. O Financial Times, por exemplo, publicou uma análise aos resultados  em que faz isso mesmo. O economista-chefe da instituição respondeu ao jornal garantindo que o exercício passou os testes de qualidade dos vários departamentos do Fundo que, sublinhou, são “muito mais duros” que aplicados a artigos académicos normais.

 

Sendo certo que a pequena amostra temporal e em termos de países do FMI coloca questões metodológicas, é também argumentável que a importância dos resultados do FMI sai reforçada por estudar uma realidade actual e próxima: a Europa vive uma situação de taxas de juro baixas e ajustamentos orçamentais simultâneos. Sobre este tema vale a pena ler e recordar que há vários estudos a apontar para o mesmo lado: Além de Fatas, Blanchard cita alguns no fim da famosa caixa: Auerbach and Gorodnichenko, 2012; Batini, Callegari, and Melina, 2012; IMF, 2012b; Woodford, 2011.  

  

3) VG defende que a transposição das conclusões de Blanchard para decisões de política económica foi feita por Paul Krugman e não pelo próprio FMI

 

Em meu entender a leitura da caixa assinada por Olivier Blanchard e co-autor foi propagada na comunicação social por um comentário do blogue no Prémio Nobel Paul Krugman, que interpretou as consequências da caixa do FMI para a condução de política – pelo que a posição que vindo a ser comentada em público é a posição oficial do prémio Nobel da economia Paul Krugman e não a posição oficial do FMI. (…) Eu julgo que a posição oficial do FMI sobre esta matéria não está de resto em nenhum material que tenha sido oficialmente distribuído aquando das reuniões anuais em Tóquio.

 

Vítor Gaspar, conferência de imprensa a 15 de Outubro

 

É verdade que Krugman usou os resultados do FMI para o debate político nos EUA. Mas Gaspar não tem razão ao considerar que o FMI não fez o exercício de aplicar os resultados à política económica. Não só o fez, como aliás o fez para Portugal pela boca da própria Directora-geral Christine Lagarde que apoia em toda a linha Olivier Blanchard, como se pode ler na transcrição da conferência de imprensa em Tóquio:

 

Just for the record, there is no difference between Olivier’s views and my views because we actually talked them through.

 

instead of frontloading heavily, it is sometimes better, given circumstances and the fact that many countries at the same time go through that same set of policies with a view to reducing their deficit, it is sometimes better to have a bit more time. That is what we advocated for Portugal; this is what we advocated for Spain; and this is what we are advocating for Greece

 

Christine Lagarde, conferência de imprensa em Tóquio a 11 de Setembro

 

4) O ministro diz que não estudou as declarações de Cavaco em Facebook – que transpõem as conclusões do estudo de Blanchard para a economia portuguesa – mas considera que o FMI não inclui Portugal nos países em que se pode aliviar a austeridade. Essas seriam recomendações para a Alemanha ou a Suécia.

 

Parece-me no entanto que é absolutamente evidente que para países em posição de pressão dos mercados financeiros ou países sob programa, a prioridade para o FMI é o restabelecimento da credibilidade e da confiança necessária ao sucessos dos programa ou a manutenção ordeira do aceso aos mercados por parte dos países sob pressão. É apenas para países que dispõem de espaço orçamental relevante que o FMI considerará a possibilidade de abrandamento do ritmo de ajustamento orçamental. Estamos portanto a falar de países como a Suécia ou a Alemanha

 

Vítor Gaspar, conferência de imprensa a 15 de Outubro

 

Gaspar tem razão quando diz que o FMI não está, com estas conclusões, a defender um abrandamento do ritmo de consolidação em Portugal. De facto, o próprio fundo vinca num recente artigo associado ao WEO sobre sustentabilidade orçamental que a elevada dívida pública, como a nacional, deixa pouca margem de manobra. Mas a verdade é que a troika acabou de suavizar as metas orçamentais de 2012 e 2013 e o FMI tem defendido pelo menos desde o início deste ano que o programa deve preocupar-se com metas estruturais e não com objectivos nominais (o que Cavaco Silva veio agora defender). O ministro não tem razão quando diz que “estamos portanto a falar de Suécia ou Alemanha”. Lagarde é aliás bastante clara:

 

in the circumstances and given the multiplier reassessment that we have produced, we do not think it is sensible to actually stick to nominal targets. We think it is much more appropriate to actually apply the measures and to let the stabilizers operate. Now, as far as countries are concerned, clearly that applies to pretty much all countries that, particularly in the Eurozone, are applying that policy mix

 

Christine Lagarde, conferência de imprensa em Tóquio a 11 de Setembro

 

Vale a pena sublinhar que a importância de não ficar “preso” a objectivos nominais é uma das mensagens centrais do Presidente da República, fazendo parecer que, daqui em diante, poderá ser mais crítico de novas medidas de austeridade adoptadas para compensar novas derrapagens orçamentais.

 

A favor do ministro fica a sensação de que a posição da direcção do FMI nem sempre é partilhada na sua totalidade pelas equipas que tem no terreno. Em Portugal, o caso da TSU, muito mais acarinhada por Poul Thomsen do que pelo resto do FMI, é disso um bom exemplo. Finalmente, valeria também a pena discutir se a suavização das metas para Portugal este ano (de 4,5% para 6% sem medidas extraordinárias), colocando o objectivo de 2013 nos 4,5% do PIB (num ano de recessão) é uma consequência suficiente a retirar das novas conclusões sobre multiplicadores orçamentais.

 

Rui Peres Jorge