#Somos todos racistas?

01/05/2014
Colocado por: Nuno Aguiar

Quando o racismo tem uma cara, o mundo (leia-se, as redes sociais) tende a chocar-se e a responder com violência. No entanto, vários estudos apontam que a discriminação mais comum e eficaz não aparece na televisão. Ela é dissimulada e muitas vezes inconsciente.

 

 

A discriminação racial voltou a ser tema de debate na última semana, com dois episódios desportivos que nos fizeram lembrar que – surpresa, surpresa! – mesmo num mundo pós-Obama continuam a existir racistas no mundo. Um adepto do Villarreal atirou uma banana a Daniel Alves durante um jogo com o Barcelona; e foi divulgada uma gravação onde se ouve Donald Sterling, dono da equipa de NBA Los Angeles Clippers, dizer que não queria que a namorada trouxesse pretos para os jogos da sua equipa.

 

O mundo respondeu com rapidez e agressividade, com as inflamáveis redes sociais a alimentarem a indignação generalizada. No caso de Dani Alves, arrancou uma onda de selfies, em que desportistas e celebridades posam a comer bananas (sabe-se agora que a campanha foi organizada por uma agência de publicidade). O adepto responsável pelo acto ficou proibido de voltar a ver um jogo ao vivo. Já as declarações de Donald Sterling criaram uma vaga de pressão para ele vender a equipa, com o próprio Presidente dos EUA a intervir. A NBA multou-o em 2,5 milhões de dólares, decidiu bani-lo para sempre da Liga e iniciará um processo para o obrigar a vender a equipa.

 

Tudo está bem, quando acaba bem. Os responsáveis foram punidos, as nossas consciências colectivas sossegaram e o mundo voltou a ser salvo do racismo.

 

Infelizmente, não é bem assim. Actos desprezíveis como estes dois são a ponta visível do iceberg e, pela sua notoriedade, os mais fáceis de lidar. A discriminação mais comum não faz manchetes de jornais. É furtiva e muito mais eficaz do que mandar uma banana à cabeça de alguém ou discriminar minorias numa Liga onde 80% dos jogadores são pretos. Num artigo publicado ontem, o Vox citava um conjunto de estudos que mostram como nem sempre o racismo tem uma cara.

 

Há poucos dias, a consultora Nextions fez duas versões de um documento sobre “secretismo comercial”, que enviou a 60 sociedades de advogados para o reverem e apontarem erros. Os textos tinham erros propositados (ortográficos, factuais e técnicos) e foram criadas duas versões: uma assinada por “Thomas Meyer”, um branco licenciado em Direito, da Universidade de Nova Iorque, e outro assinado por “Thomas Meyer”, um negro licenciado em Direito, da Universidade de Nova Iorque. Os resultados mostram que os revisores foram muito mais duros a avaliar o documento assinado pelo segundo. De 0 a 5, a nota média deste foi 3,2. O que vinha assinado pelo branco? 4,1. A diferença foi especial notória na detecção de erros ortográficos do texto. Apesar de estarem a avaliar exactamente o mesmo texto, no primeiro encontraram, em média 5,8 dos 7 erros. No segundo, apenas 2,9 dos 7.

 

Como sublinha o Vox, uma amostra tão pequena limita as generalizações que se possa fazer deste estudo. Contudo, ele vai ao encontro daquilo que outras investigações já concluíam. Nos Estados Unidos, por exemplo, os médicos tendem a dar menos analgésicos a negros do que a brancos e há outros estudos que revelam um preconceito inconsciente (involuntário?) entre os médicos, que consideram os pacientes negros menos cooperantes, acabando por administrar tratamentos diferentes. Em outro estudo de 2007, uma equipa de psicólogos criou um videojogo, em que iam aparecendo sujeitos armados e desarmados. Quem estava a jogar tinha a opção de disparar ou não contra eles. A investigação concluiu que era mais comum disparar contra um negro desarmado do que contra um branco desarmado. Uma conclusão que pode explicar algumas diferenças de comportamento da polícia, por exemplo.

 

Um dos estudos mais conhecidos sobre este tema, realizado em 2003, consistiu no envio de 50 currículos falsos, com nomes tipicamente utilizados por famílias caucasianas e por famílias de afro-americanos, na perspectiva de serem chamados para um entrevista de emprego. Os brancos tinham mais 50% de hipóteses de ser chamados. Ter um currículo melhor fazia diferença significativa para os caucasianos e pouco mudava para os negros. Por último, na NBA – estás a ouvir Sterling? – árbitros brancos tendem a marcar mais faltas contra jogadores negros.

 

O que é que estes estudos têm em comum? A maior parte da descriminação racial surge de forma subtil, diária e muitas vezes inconsciente. Raramente têm uma cara (Sterling) ou um símbolo (uma banana). Em Portugal, indignamo-nos (com toda a razão) quando uma discoteca diz a um atleta olímpico que o grupo dele tem “demasiados pretos”, mas pouca atenção damos aos vários candidatos negros que foram ultrapassados por brancos menos qualificados para trabalhar nessa mesma discoteca.

 

Afinal, #somostodosmacacos ou #somostodosracistas?

 

Nuno Aguiar