O mundo mágico da dívida pública de Portugal

29/03/2012
Colocado por: Pedro Romano

Já há Orçamento Rectificativo. Há muita coisa nova (e nem toda fazia parte dos planos, que foram revelados a conta-gotas por Vítor Gaspar), mas o mais importante, como é cada vez mais habitual, está “abaixo da linha”. Ou seja, não conta para o défice. O que não significa que não seja importante.

 

 

 

Há dois tipos de alterações orçamentais. As seguintes, que conseguimos apurar no Relatório do Orçamento, são as que compreendem despesa (ou receita) efectiva e acabam por ter reflexo orçamental. Nomeamos a alteração e especificamos, à frente, o seu impacto no saldo efectivo. A informação é retirada do Relatório do Orçamento. Nota: nem sempre é possível confirmá-la através dos Mapas de Despesa anexos.

 

a) Receita extraordinária com transferência da parte dos fundos de pensões da banca que não foi transferida em 2011. (+2.693M€

b) Despesa com pensões decorrente da incorporação dos pensionistas da banca no regime geral de Segurança Social (-522M€)

c) Regularização das dívidas do hospitais EPE (-1.500M€)

d) Transferência do fundo de pensões do BPN para a Caixa Geral de Aposentações (97M€)

e) Revisão em baixa da receita fiscal, devido a degradação da conjuntura macroeconómica (-293M€)

f) Agravamento do saldo da Segurança Social, de novo devido à degradação da conjuntura (-292M€)

g) Encargos devido à não adjudicação do TGV (-30M€)

h) Regularização de responsabilidades financeira associadas à introdução de portagens nas ex-SCUT (-59M€)

i) Reforço das transferências para o SNS (-200M€)

j) Contribuição para o Fundo Europeu de Desenvolvimento e Banco interamericano de desenvolvimento (-8,1M€)

k) Dotação para o Conselho de Finanças Públicas (-2M€)

l) Receita extraordinária com atribuição de direitos de utilização de frequências da 4ª geração móvel (+272M€)

m) Poupança em juros pagos, devido à suavização das condições do empréstimo feito no âmbito do PAEF e à melhoria das condições de colocação de Bilhetes do Tesouro (+684M€)

n) Poupança associada à reprogramação do QREN e majoração das taxas de cofinanciamento (+139M€)

 

Tudo somado, o impacto líquido é positivo em 978M€. Curiosamente, o Orçamento indica um impacto mais modesto, de apenas 629M€. Uma razão possível para a discrepância está numa eventual especificação deficiente dos verdadeiros impactos orçamentais. Por exemplo, a transferência para o SNS (200M€) só é uma transferência entre sectores da própria Administração Pública, pelo que só terá tradução orçamental se o próprio SNS utilizar directamente esta verba. Esta salvaguarda não é feita no Relatório do Rectificativo.

 

Na óptica da contabilidade nacional (CN), utilizada pelo Eurostat, pela troika e pela Comissão Europeia, há importantes ajustamentos a fazer. O fundo de pensões da banca, que é receita de 2012, corresponde a uma operação afinada no ano passado, pelo que deve ser completamente imputada a esse exercício. O pagamento de dívidas dos hospitais também corresponde, segundo informação do Ministério das Finanças, a uma operação que já terá sido registada mas que acabou por não ser concretizada. O impacto final no saldo em CN acaba assim por ser negativo em cerca 215M€, um valor muito pouco signficativo. O Orçamento elenca, contudo, um conjunto de critérios de contabilização específicos do PAEF que fazem com que o verdadeiro impacto de todas as medidas (versão CN) seja de 688M€.

 

A parte estranha vem a seguir. Os 688M€ representam 0,4% do PIB, o que atiraria o défice para 4,9%. Mas o Relatório mantém a meta, com o argumento de que, “numa base comparável”, o défice de acordo com o OE 2012 inicial teria sido de… 4,1%. Claro que não é isto que aparece no OE 2012, que de facto aponta para a meta do PAEF (os tais 4,5%). Mas o Rectificativo acaba por não dar qualquer explicação para a revisão em baixa do (qual será a melhor forma de dizer isto?…) défice-de-2012-previsto-no-primeiro-Orçamento. Estranho, no mínimo.

 

Passamos agora às alterações que não têm impacto no défice, por se tratarem de operações puramente financeiras, como compra de títulos. São as seguintes:

 

a) Participação no Mecanismo Europeu de Estabilidade (804M)

b) Empréstimos às Regiões Autónomas dos Açores (135M€) e da Madeira (938M€)

c) Reforço da dotação orçamental para empréstimos QREN/BEI (77M€)

d) Compra de créditos bancários de empresas públicas (723M€), de municípios (2.057M€) e do sector da saúde (220M€)

e) Empréstimos à Parque Escolar (90M€), REFER (150M€), Estradas de Portugal (97M€) e Viana Polis (20M€)

f) Execução de garantias Europarques e MARL (27M€)

g) Aumento de capital da CGD (1.000M€)

 

Ao todo são 6.338M€, quase 4% do PIB. Mesmo que não tenham impacto no défice, têm de ser financiados de alguma forma. É por isso que o articulado prevê uma nova autorização de endividamento que reforça a anterior em 5.020M€. Como o valor é insuficiente para financiar a compra de activos, o Ministério das Finanças deverá lançar mão a outras reservas de liquidez, como o excedente financeiro obtido este ano (os 629/978M€ a que já nos referimos) e, eventualmente, o próprio excedente da Segurança Social, através do seu Fundo de Estabilização Financeira.

 

As contas tornam-se mais tortuosas a seguir. É que este valor dificilmente significará um agravamento da dívida pública na mesma medida, já que uma parte será utilizada para retirar dívida de entidades públicas que está colocada junto da banca e trazê-la para dentro do próprio Estado. Entre Madeira, Açores, Municípios, hospitais e empresas públicas, falamos de um valor em torno dos 4.430M€. Na prática, são títulos que já existem e que passam para o Estado. Ao fazê-lo, “fica tudo em família” e a dívida consolida. Em suma: na prática, o Governo emite mais 5 mil milhões de euros de dívida pública do que estava previsto e a dívida apurada de acordo com os critérios do Eurostat cresce nuns magros 590M€.

 

Este artifício tem um custo, mesmo que meramente potencial: se as entidades cuja dívida foi adquirida entrarem em “default”, caberá ao Estado assumir as perdas e reflecti-las nas suas contas. Nesse momento, a operação “puramente financeira” (compra de activos e/ou passivos) converte-se numa despesa corrente efectiva e torna-se uma transferência de capital, à semelhança do que aconteceu em tempos recentes com as dívidas dos hospitais EPE (os célebres “aumentos de capital” invariavelmente reclassificados por exigência do Eurostat).

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