O BCE deve ser credor de último recurso dos Estados?

11/05/2012
Colocado por: Rui Peres Jorge

 

 

Leitores dão preferência marginal a um BCE que não financie governos: 52% votaram “não”

 

Acabou o Frente a Frente. João Galamba e Adolfo Mesquita Nunes criaram o espaço para uma reflexão cativante sobre o papel do BCE. Leitores responderam com votos e argumentos: mais de 2600 leituras dos argumentos, contraargumentos e comentários e 1293 votos nos oito dias de debate. O massa monetária agradece a todos.   

 

1. Os leitores que se opõem a que o BCE actue como credor de último recurso dos Estados acabaram por ganhar uma votação sempre renhida ao oitavo dia de debate, e que começou com uma ligeira vantagem para a posição de João Galamba que se manteve à frente até terça-feira, dia de primeiro balanço e de contra-argumentos.

 

2. Galamba partiu para o debate com quatro ideias fortes: 1) A crise da Zona Euro é essencialmente o resultado de uma falha institucional: em 2008 e 2009 os orçamentos nacionais tiveram de ser usados para evitar o colapso da região, mas depois não houve um banco central comum para garantir a solvabilidade dos países; 2) A proibição de financiamento monetário dos Governo resulta de um preconceito anti-Estado: o BCE pode ser credor de último recurso do sector financeiro, mas não dos Governos; 3) A estabilização da Zona Euro precisa de investimento público, o qual neste contexto só será possível com essa garantia do banco central; 4) Privar os Estados de financiamento mas emprestar dinheiro aos bancos para que o façam indirectamente é uma contradição: ficam pior os Estados e os bancos.

 

4. Adolfo Mesquita Nunes, contra o financiamento dos Estados pelo BCE, centrou os seus argumentos na importância de impedir que os Governos adiem as reformas, a redução do endividamento e a procura de situações orçamentais sustentáveis. Para Mesquita Nunes: 1) A crise evidencia o falhanço de um modelo “socialista” de crescimento baseado na despesa e no endividamento; 2) A transformação nesta fase do BCE em credor de último recurso dos Governos permitirá que se continue a alimentar um modelo que oferece apenas uma ilusão de crescimento, adiando as reformas; 3) Permitirá mais dívida que redundará em mais inflação e num enfraquecimento da capacidade de actuação do BCE.

 

5. Os ingredientes para o debate estavam lançados. Nos primeiros cinco dias mais de 1.600 leituras de argumentos e 560 votos complementavam a troca de argumentos dos leitores do massa monetária. Carlos Novais, por exemplo, assinava por baixo a opinião de Mesquita Nunes, opondo-se a um sistema baseado na criação de moeda para expansão de crédito que acaba por resultar em bolhas e colapsos. Pedro Pinto evidenciava que, na prática, o BCE já é indirectamente credor de último recurso; Tiago Mestre vincava a fragilidade crescente do balanço balanço do BCE e João Monteiro Rodrigues considerava que, dada a gravidade da situação, o BCE deve mesmo financiar os Estados.

 

6. Terça-feira chegaram os contra-argumentos. O deputado centrista respondeu a Galamba recusando ter qualquer preconceito anti-Estado, e reforçando que, sem responsabilidade orçamental e noção dos limites de endividamento, não há moeda única que resista. Mesquita Nunes admitiu que pudesse haver argumentos para alterações na arquitectura do euro, mas sublinhou que não pode apoiar essa mudança quando os seus proponentes pretendem, essencialmente, prolongar um modelo de endividamento público crescente.

 

7. Galamba, por seu lado, reforçou que esta não é uma crise de dívida pública. Se fosse, Irlanda e Espanha, não estariam com problemas. Da mesma forma, o Reino Unido e os EUA estariam bem pior do que estão. Realçou ainda que ao optar por ser credor de último recurso através dos bancos, o BCE só está a aumentar os riscos dos bancos e dos Governos.

 

8. Nos últimos três dias de debate, o leitor Carlos Novais voltou a argumentar contra Galamba, defendendo que a expansão do crédito tem ser acompanhada de poupança e não de mais moeda. Juntaram-se ao debate outros dois leitores, estes apoiando o papel do BCE enquanto credor de último recurso. Nuno Pereira criticou o facto dos bancos receberem dinheiro do BCE a 1% para o emprestarem aos governos a juros muito mais altos. Ricardo Cabral apresentou uma critica completa ao actual modelo institucional do euro argumentando, por exemplo, que os bancos centrais prestam um serviço público e que existem para servir os Estados, não podendo, portanto, ter uma relação de superioridade sobre eles; e também que sem a intervenção do BCE, Portugal e vários outros países entrarão em incumprimento.

 

9. O debate e a votação acabaram neste frente-a-frente, mas os argumentos ficam para uma reflexão que é essencial para o futuro da união monetária. O massa monetária agradece a todos.

 

 

Contra-argumentos (terça-feira, dia 08 de Maio)

 

Os leitores estão divididos sobre o papel do BCE no financiamento dos Estados.

Até à apresentação da segunda volta de argumentos na terça-feira de manhã, o Frente-a-Frente entre João Galamba e Adolfo Mesquita Nunes já foi visitado aqui no massa monetária mais de 1.600 vezes e quase 600 leitores do Negócios tinham votado contra ou a favor do BCE actuar como credor de último recurso dos Estados.

Chegados aos contra-argumentos dos convidados, na recta final do debate sobre vantagens e desvantagens do BCE financiar directamente Governos. A votação e o debate continuarão abertos aos leitores até quinta-feira, dia 10. Sexta-feira será dia de balanço final. O massa monetária deseja a continuação de um bom debate a todos.

  

João Galamba: “O BCE tem de ser credor dos Estados porque, na verdade, não tem alternativa”

 
1. Quando o Adolfo Mesquita Nunes diz que “defender o BCE como credor de último recurso, sem  abandonarmos o modelo socialista, equivale a defender que a melhor cura para a ressaca é não parar de beber…” está a pressupor que a crise actual é uma crise de finanças públicas. Tendo em conta que, até 2008, os défices na zona euro estavam todos a baixar e que dois dos mais virtuosos, a Irlanda e a Espanha, estão na situação que se conhece, essa afirmação torna-se difícil de sustentar.

2. O Adolfo repete a tese de que a crise das dívidas soberanas é uma crise de dívida pública, quando, na verdade, se trata de uma crise da arquitectura institucional da moeda única: uma zona euro que, sem um orçamento federal capaz de pôr em prática políticas contra-cíclicas, necessitou de recorrer aos orçamentos nacionais para evitar o colapso económico e financeiro e que, depois, não foi capaz de financiar essa intervenção.

3. A zona euro não tem uma crise das dívidas soberanas por causa dos níveis de dívida pública. Se assim fosse, EUA, Japão e Reino Unido há muito que estariam na mesma situação e não estão. Aquilo que a zona euro tem de único, não são os níveis de dívida pública, nem é o socialismo que o Adolfo refere; é o facto de ter experimentado gerir uma moeda única sem um tesouro europeu, isto é, sem orçamento e dívida europeus. Pois bem: essa experiência falhou.

4. A questão que me parece mais relevante não é saber se o BCE deve ser credor de último recurso – porque todos os bancos centrais o são, por definição. É, isso sim, perceber como é que, na situação actual, o Banco Central da zona euro tem tentado actuar como credor de último recurso, por que razão tem falhado e por que razão necessariamente continuará a falhar.

5. Em todas as outras zonas monetárias, a dívida pública do país é necessariamente o activo sem risco do sistema, porque é o activo utilizado pelo banco central para gerir a sua política monetária e determinar soberanamente as taxas de juro. No Reino Unido, por exemplo, não são os mercados que determinam a taxa de juro da dívida pública – é o Banco de Inglaterra. Na zona euro, porque existem 17 dívidas públicas, não é assim. Isto não afecta apenas a solvabilidade das finanças públicas – também impede o banco central de desempenhar adequadamente as suas funções enquanto estabilizador do sistema. No fundo, e independentemente da política orçamental, esta singularidade da zona euro acaba por afectar a própria eficácia da política monetária.

6. Independentemente do que vai dizendo, na prática, o BCE reconhece o problema – daí os LTRO (Long-term refinancing operations). Mas, ao contrário do chamado quantitative easing, os LTRO não envolvem compra de dívida pública, apenas a sua utilização como garantia. Isto mantém o risco da dívida pública no balanço dos bancos, o que, como se tem visto, deteriora os seus balanços e aumenta as necessidades de capital. Exigir que sejam os Estados cuja dívida pública tem deteriorado os balanços dos bancos a contrair dívida pública para reforçar esses mesmos balanços torna explícita a circularidade e a natureza essencialmente contraditória desta estratégia.
 
7. Independentemente do que possa estar escrito nos tratados, o BCE tem de ser credor dos Estados porque, na verdade, não tem alternativa. A lógica do sistema assim o exige.

João Galamba é deputado PS, coordenador do grupo parlamentar do partido na Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública e membro da Comissão Eventual para Acompanhamento das Medidas do Programa de Assistência Financeira a Portugal. Escreve com frequência no blogue Jugular.

 

 

Adolfo Mesquita Nunes: “A ressaca não passa se continuarmos a beber”

 

1. Há uma diferença entre mim e o João Galamba: o João é socialista, vê o Estado como motor da economia e acredita que o endividamento e a despesa pública geram crescimento; eu sou liberal, vejo a iniciativa privada como motor da economia e acredito que o endividamento e a despesa pública retiram recursos ao sector privado, comprometendo o crescimento.

2. Esta diferença traduz uma compreensão distinta da situação em que nos encontramos, e que consiste, recorde-se, num nível de endividamento superior a 100% do PIB, numa permanente situação deficitária acima dos 3%, numa taxa de crescimento absolutamente medíocre nos últimos 10 anos e numa incapacidade de honrar as nossas dívidas.

3. Por isso, o João nega a existência de uma crise das dívidas. Não é que o João negue que estamos endividados até ao tutano ou que negue que as consequências do endividamento se não recomendam. Não. O João apenas considera que o endividamento só é um problema se tivermos mesmo mesmo de sofrer as consequências.

4. Para os socialistas não há nada de errado em ter o Estado a consumir recursos dos contribuintes, das gerações futuras, dos alemães ou dos aforradores (via inflação), desde que isso permita manter o modelo socialista. E não estou a teorizar. A carga fiscal que temos, o nível de despesa e endividamento que conhecemos ou as PPP que nos amarram são consequências dessa forma de olhar para o dinheiro dos contribuintes.

5. E que forma de evitar as consequências do endividamento encontraram os socialistas? Um banco central que abra uma torneira e nos despeje dinheiro. Note-se no argumento do João: nós não estamos falidos, apenas não temos é ninguém que nos empreste dinheiro.
 
6. Ora, salvo o devido respeito, que é muito, aquilo que o João diz não é diferente daquilo que os adolescentes dizem quando referem que a melhor cura para a ressaca é não parar de beber. A diferença é que os adolescentes dizem isso a brincar e o João di-lo de forma séria.

7. Claro que a coisa poderia ser menos gravosa se, apesar de tudo, o modelo socialista gerasse crescimento. Mas não gera. É por isso que pergunto tantas vezes: se o socialismo é bom e gera crescimento porque é que Portugal está como está e exibe as taxas de crescimento que exibe?

8. Claro que o João ensaia algumas respostas. Ele é a moeda única, ele é a arquitectura da União, ele é a deficiente intervenção do BCE… Mas quem nos governou nos últimos 15 anos? Quem nos mandou endividar para lá dos limites? Quem nos mandou consumir a riqueza dos portugueses em despesa pública asfixiante? Pois…

9. Mas mesmo que gerasse crescimento, será imaginável a sustentabilidade de um modelo que depende do endividamento e da despesa, com um banco a financiar eternamente e sem limite? Alguém consegue conceber um sistema desses sem estoirar, mais tarde ou mais cedo? E o que sucederá quando esse sistema estoirar?

10. Por tudo isto, a transformação do BCE em credor de último recurso não é uma solução técnica que procura transformar o nosso modelo económico num modelo mais competitivo e gerador de maior crescimento. Não. Essa transformação não passa de um estratagema criado para manter as políticas de despesa e de endividamento que temos tido, com os resultados que conhecemos.

11. E não, não há nesta posição qualquer preconceito anti-Estado. Há tão-somente a convicção de que sem governos responsáveis, capazes de perceber as consequências do endividamento, não há moeda única que resista, com ou sem credor de último recurso.

12. Eu até estaria disposto a considerar uma transformação do BCE no âmbito de uma nova arquitectura institucional, mais coerente até. Há bons argumentos para isso. O que não estou disposto, em nenhuma circunstância, é a considerar essa transformação tal como proposta pelo João: uma transformação de forma a fazer perdurar, custe o custar, o modelo que nos arruinou. Até porque essa transformação já foi tentada. No Zimbabué.

 

Adolfo Mesquita Nunes é deputado do CDS-PP, coordenador do grupo parlamentar do partido na Comissão Eventual para Acompanhamento das Medidas do Programa de Assistência Financeira a Portugal e membro da Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública. Escreveu até Março de 2011 no blogue O Insurgente, o que deixou de fazer após ser eleito para a Comissão Executiva do CDS-PP.

 

 

 

 

Argumentos iniciais (quinta-feira, dia 03 de Maio)

 

Uma das razões muitas vezes apontada para o prolongamento da crise europeia – e uma diferença fundamental com Reino Unido ou EUA – é a inexistência de um credor de último recurso dos Estados que possa descansar os investidores quanto ao risco de incumprimento soberano na Zona Euro. O debate sobre se o BCE pode e deve desempenhar esse papel tem sido um dos temas mais debatidos nesta crise.

 

Partindo das posições contrárias dos deputados Adolfo Mesquita Nunes (CDS-PP) e João Galamba (PS) o Frente-a-Frente do massa monetária convida os leitores ao debate sobre a pergunta: “Deve o BCE ser credor de último recurso dos Estados?”.

 

Apresentados os argumentos iniciais dos dois convidados, o debate e a votação dos leitores prolongam-se até à próxima quinta-feira, dia 10. Terça-feira, dia 8, chegarão os contraargumentos de Adolfo Mesquita Nunes e João Galamba. O massa monetária deseja bom debate a todos.

 

 

Adolfo Mesquita Nunes: “A ressaca não passa se continuarmos a beber”

 

1. A crise das dívidas soberanas veio escancarar a insustentabilidade do modelo económico socialista, baseado no endividamento e na despesa. Não se trata de um juízo moral mas de uma constatação: uma economia alicerçada na dívida e na despesa pública não tarda em confrontar-se com dúvidas sobre a sua solvabilidade.

 

2. É claro que o crescimento sustenta a persistência do modelo por algum tempo, na medida em que consegue criar confiança na sua solvabilidade. Por isso, o modelo socialista é dependente do crescimento: sobrevive quando este existe, esboroa-se quando este se esvai.

 

3. Não surpreende assim que os socialistas proponham medidas que artificialmente criem a ilusão de crescimento. Transformar o BCE num credor de último recurso é uma delas. Acontece que o modelo socialista não depende apenas do crescimento: compromete-o.

 

4. Há uma enorme diferença entre crescimento aproveitado pelos indivíduos e pelas famílias, que cria riqueza e prosperidade, e crescimento consumido pelo Estado para sustentar políticas eufemísticamente descritas como de estímulo ao crescimento. É que essas políticas são financiadas pela dívida, que gera mais impostos, que gera mais dívida, que gera mais impostos e que gera mais dívida numa espiral que já conhecemos. A única coisa que essas políticas não geram é precisamente o crescimento real.

 

5. O problema que temos actualmente não é assim o de falta de crescimento que sustente um modelo. É o de um modelo que autofagicamente consome o crescimento de que desesperadamente carece.  

 

6. A transformação do BCE em credor de último recurso procura assim lidar com algumas das consequências do modelo socialista. E pode até minimizá-las temporariamente. Mas de nada servirá se o modelo se mantiver na mesma espiral. E a verdade é que quem defende esta solução não pretende mudar de modelo, pretende mantê-lo custe o que custar.

 

7. A transformação do BCE em credor de último recurso é assim uma saída política, não uma solução técnica. Ela não procura responder a um problema real de despesa e de endividamento mas tão-somente criar condições, artificiais, para cantar loas ao socialismo. 

 

Essa transformação do BCE permitirá maior crescimento? Não, porque a despesa e o endividamento consomem-no.

 

Essa transformação do BCE permitirá saldar as nossas dívidas? Não, porque o objectivo é, precisamente, o de manter a política de despesa e endividamento.

 

Essa transformação do BCE sossegará os credores? Não, porque os credores sabem que a capacidade de intervenção do BCE é limitada, logo insuficiente para sustentar um modelo que pressupõe uma capacidade ilimitada de endividamento.

 

Esta transformação do BCE é assim a derradeira tentativa de financiar, não a economia, mas opções políticas falhadas: não podendo carregar mais nos impostos nacionais, procuram-se os impostos alheios ou, não havendo, a impressão de euros.

 

8. É claro que esta solução permite, por algum tempo, evitar que problemas de liquidez não degenerem em problemas de solvabilidade. Mas o tempo passa, passa sempre, e as consequências bater-nos-ão à porta. Talvez fosse mais prudente tratar agora dos nossos problemas em vez de os adiar.

 

9. É por isso que defender o BCE como credor de último recurso, sem abandonarmos o modelo socialista, equivale a defender que a melhor cura para a ressaca é não parar de beber…

 

Adolfo Mesquita Nunes é deputado do CDS-PP, coordenador do grupo parlamentar do partido na Comissão Eventual para Acompanhamento das Medidas do Programa de Assistência Financeira a Portugal e membro da Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública. Escreveu até Março de 2011 no blogue O Insurgente, o que deixou de fazer após ser eleito para a Comissão Executiva do CDS-PP.

 

 

João Galamba: “O financiamento monetário dos Estados é uma necessidade sistémica”

 

1. A crise das dívidas soberanas nunca existiu. Uma crise sistémica é isso mesmo: uma crise do sistema. No caso do euro, é uma crise de um sistema que escolheu não gerir colectivamente a sua dívida.  Essa escolha singular revelou-se, como era previsível, insustentável. O BCE tem de financiar Estados porque, na actual crise, tal se revelou necessário para a sobrevivência da própria moeda única. Uma dívida que foi gerada, em grande parte, pela existência de uma moeda única tem de ser assumida por toda a união monetária. Pretender o contrário é, como a realidade tem amplamente demonstrado, uma impossibilidade.

 

2. Não foram as finanças públicas de alguns países da zona euro que se revelaram insustentáveis; foi uma arquitectura institucional que, no final de 2008, e na ausência de um orçamento europeu, teve de se socorrer dos orçamentos nacionais para salvar a economia da zona euro do colapso e, depois, a partir de Maio de 2010, perante a subida dos juros, não foi capaz de colocar o BCE a financiar as consequências orçamentais dessa intervenção. O que expôs os países da zona euro ao risco de insolvência não foram os níveis de dívida pública, foi o facto de pertencerem a uma zona monetária onde o banco central não é um financiador de último recurso.

 

3. A impossibilidade do BCE financiar directamente a dívida dos Estados membros (artigo 123º dos Tratados) reflete um profundo preconceito anti-Estado. Mediante apresentação de garantias (collateral), o BCE financia ilimitadamente (a um preço que, soberanamente, determina) o sector financeiro. As razões que são invocadas para proibir o financiamento dos Estados deixam de ser válidas quando se trata do financiamento do sector financeiro. Os mecanismos monetários que geram inflação, estranhamente, só se manifestam no financiamento da despesa pública. Do ponto de vista monetário, seja público ou privado, consumo é consumo e investimento é investimento. Mas para o BCE não é assim. O financiamento monetário de dívida pública é interpretado em termos morais: um Estado que não pode ir à falência é um Estado que não se disciplina. O financiamento monetário do sector financeiro é interpretado pragmaticamente: ele é necessário para a estabilizar o sistema. O BCE é financiador de último recurso de um sistema que, aparentemente, precisa do sector financeiro, mas não precisa de défices públicos.

 

4. Um sistema monetário que pretenda ser viável tem de reconhecer algo que Keynes percebeu nos anos 30. Só a intervenção estabilizadora (e estratégica, via investimento) do Estado na economia pode salvar o mercado da destruição. O BCE, se pretende estabilizar financeiramente a zona euro, tem obrigatoriamente de financiar o(s) único(s) agente(s) capazes de desempenhar essa função, isto é, os Estados membros. 

 

5. O actual preconceito anti-Estado redunda numa impossibilidade prática. O BCE está a dar liquidez aos bancos para que estes comprem dívida pública de Estados que estão a minar a base económica que lhes permitiria honrar os seus compromissos. Para piorar ainda mais a situação, é exigido aos Estados que sejam accionistas de último recurso dos bancos. Este processo é manifestamente contraditório e nega-se a si próprio. Todos os meses esperamos que as políticas expansionistas do BCE cheguem à economia real. Todos os meses esperamos que as políticas de austeridade gerem confiança. Todos os meses essa promessa é adiada e a crise se agrava. Uma moeda não funciona assim.

 

João Galamba é deputado PS, coordenador do grupo parlamentar do partido na Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública e membro da Comissão Eventual para Acompanhamento das Medidas do Programa de Assistência Financeira a Portugal. Escreve com frequência no blogue Jugular.

Rui Peres Jorge