EUA: cor da pele conta quando polícias batem, mas não quando disparam

18/07/2016
Colocado por: Nuno Aguiar

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Este sábado, no SBSR, Kendrick Lamar agradeceu ao público ter vindo celebrar a sua música, numa altura em que o mundo atravessa um período estranho. O concerto acabou em apoteose ao som da optimista “Alright”, um hino de movimentos como o Black Lives Matter. Isso foi horas antes de mais três polícias serem assassinados no Louisiana, subindo ainda mais a temperatura das tensões raciais nos EUA. No centro do debate está saber se negros e brancos são tratados de igual forma pela polícia.

 

 

A não ser que tenha vivido debaixo de uma rocha nos últimos dias, deve ter-se apercebido da convulsão nos Estados Unidos em torno da morte de dois homens negros pela polícia em St. Paul (Minnesota) e em Baton Rouge (Louisiana), ao que se seguiu o assassinato de cinco polícias durante protestos em Dallas e outros três polícias em Baton Rouge.

 

Mais do que situações isoladas, episódios de violência excessiva da polícia dominam cada vez os telejornais, com fotografias e vídeos a espalharem-se como incêndios de Verão, alimentando por sua vez a indignação das comunidades afectadas. Houve Michael Brown, Eric Garner, Tamir Rice, Walter Scott, Alton Sterling, Philando Castile. Só para referir os mais famosos. Depois, tivemos Ferguson a arder e polícias mortos emboscados na rua (os cinco agentes mortos em Dallas constituíram um dos dias mais sangrentos para o corpo policial norte-americano).

 

A aparente desproporcionalidade na utilização de força policial contra cidadãos afro-americanos levou ao nascimento do movimento Black Lives Matter, impulsionando o debate nacional sobre as divisões raciais nos EUA.

 

Alguns podem argumentar que o problema não existe. Mas são os próprios norte-americanos a identificá-lo. Dados publicados recentemente pelo New York Times mostram que 69% da população acha que as relações entre as diferentes raças são “más”. Um dos valores mais elevados desde os protestos de 1992 em Los Angeles. E está a piorar. Há um ano o valor era “apenas” 38%.

 

O posicionamento neste debate depende muito da experiência e percepção individual. Logo, pode ser útil tentar quantificar uma das principais queixas da comunidade afro-americana: a polícia trata os negros e os brancos de forma diferente? Um estudo publicado este mês talvez tenha aquela que é até agora a resposta mais informada a esta pergunta. Se tivesse de a resumir numa frase seria: sim, mas não tanto como poderia pensar.

 

O estudo é assinado por Roland G. Fryer, professor de Harvard e analisa mais de 1.300 tiroteios, envolvendo a polícia. Conclui que, de facto, os homens e as mulheres negras são tratados de forma diferente pelas autoridades policiais norte-americanas. Se for preto, é mais provável que um polícia o atire para o chão, o algeme ou lhe mande spray pimenta à cara. No entanto – e esta é a conclusão que está a gerar mais polémica – a raça não parece relevante na altura de disparar a arma.

 

Comecemos pelas interacções menos violentas. O estudo conclui que existem diferenças raciais, algumas das quais “muito grandes”, na utilização de força, mesmo quando se ajusta ao contexto e comportamento dos envolvidos. À medida que a utilização de força se torna mais violenta – de empurrar até bater com o cassetete -, as diferenças raciais mantêm-se.

 

Mesmo quando os polícias dizem que o cidadão foi “cooperante”, há 21% mais hipóteses de haver contacto físico se o suspeito for negro. Veja em baixo como as probabilidades mudam, apenas em casos de cidadãos que obedeceram às indicações da polícia, não ameaçaram os agentes, não tinham armas em sua posse e não foram depois presos.

 

 

Contudo, quando damos o salto para a forma mais extrema de utilização de força – o polícia disparar a arma ou usar o Taser – essas diferenças raciais parecem desaparecer. Ao olhar para dados de três cidades do Texas (Austin, Dallas e Houston), seis condados da Florida e o condado de Los Angeles, o estudo conclui até o oposto: há menos probabilidades de um negro levar um tiro da polícia do que um branco. Mesmo que olhemos apenas para situações em que os suspeito não atacou a polícia.

 

Fryer usa os dados da Houston para ir mais longe na análise e quantificar a diferença. Olha apenas para interacções em que a utilização de força letal poderia ser mais justificada, como tentativa de homicídio de um agente da polícia, agressão a um polícia, resistir à prisão, fugir à prisão ou interferir na mesma. A conclusão é que os brancos têm mais 23,8% de probabilidades de levar um tiro. “Não encontramos nenhuma prova de discriminação racial em tiroteios que envolvam polícias”, escreve Fryer no estudo. “É o resultado mais surpreendente da minha carreira”, afirmaria mais tarde ao NYT.

 

O debate racial nos EUA parece estar partido entre os que argumentam que não há feridas de séculos por sarar (“o Presidente é negro!”) e aqueles que sentem que são tratados de forma diferente cada vez que caminham pelas ruas de Nova Iorque ou de Houston. O estudo de Fryer aponta para uma realidade mais complexa. Não quer dizer que as mortes chocantes (e filmadas) não tenham sido alimentadas por discriminação policial, mas extrapolar esses acontecimentos a todo o país pode ser precipitado.

 

“Dada quantidade de “provas” vídeo, que podem ser vistas como indicativas de um racismo estrutural nos departamentos de política em toda a América, a consequente e compreensível indignação nas comunidades negras por toda a América e os resultados das nossas análises anteriores de utilização não-letal de força, os resultados […] são surpreendentes”, lê-se no estudo.

 

Claro que até o autor nota que é preciso cautela na interpretação dos dados, que também apresentam algumas inconsistências (já outros também apontaram essas fragilidades). Fryer admite que os departamentos de polícia que aceitaram providenciar estes dados podem tê-lo feito por saberem que a análise dos mesmos não iria revelar discriminação. Como ele nota, é o mesmo que analisar discriminação no mercado de trabalho através de dados de recursos humanos providenciados pelas próprias empresas.

 

Além disso, o contexto enunciado pelos polícias nos seus relatórios pode também ser parcial. Os relatos dos cidadãos mostram uma discriminação muito mais aguda. E não é como se o estudo fosse muito simpático para a polícia. Ele mostra que existe discriminação, só não no momento mais trágico de disparar a arma.

 

“Sabes, protestar não é a minha cena. Mas dados são a minha cena”, diz Fryer. Ok. Mas os dados podem ajudar a perceber melhor contra o que é que se está a protestar.

 

Nuno Aguiar