E se o cliente “lava dinheiro” ou financia terroristas?

28/03/2013
Colocado por: João Maltez

Um parecer da Ordem dos Advogados critica de forma severa uma proposta do Parlamento e o Conselho europeus para alterar a legislação sobre prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo. Exige-se respeito pelo sigilo profissional do advogado, diz o parecer assinado pelo bastonário.

 

Em causa está a manutenção da regra que obriga os advogados a prescindir do sigilo profissional e a comunicar às autoridades factos que lhes tenham sido revelados pelos respectivos clientes. Desde que, de forma directa ou indirecta, possam ter por objecto actos ou operações de “lavagem de dinheiro” e financiamento de actos terroristas.

 

Fica a opinião de dois especialistas em Direito Europeu, a partir das duas perguntas que se seguem:

 

1 – Concorda com a posição crítica da Ordem dos Advogados relativamente à proposta de directiva do Parlamento e Conselho europeus? Porquê?

 

2 – Devem ou não os advogados, individualmente, estar sujeitos à obrigação de comunicar às autoridades eventuais casos de clientes que incorram no crime de branqueamento de capitais? Porquê?

 

João Paulo Teixeira de Matos

 

Sócio da Garrigues,

Advogado especialista em Direito Europeu e da Concorrência

 

1 – No que respeita às obrigações de comunicação por parte dos advogados às autoridades, a proposta de directiva não se afasta substancialmente das obrigações de comunicação já hoje previstas nas  Diretivas 2005/60/CE2006/70/CE, transpostas para o ordenamento jurídico interno pela Lei nº 25/2008º 25/2008, de 5 de Junho.

 

Essas obrigações já existem, tendo Portugal optado, a meu ver bem, pelo menor dos males – em lugar de estabelecer uma relação directa entre os advogados e as autoridades policiais, à luz do que permitem as directivas, interpôs-se a Ordem dos Advogados. Ou seja, a comunicação é feita pelos advogados à respectiva Ordem.

 

No parecer ora publicado a Ordem dos Advogados pronuncia-se contra qualquer tipo de comunicação entre advogados e autoridades policiais, seja uma comunicação directa, seja uma comunicação por interposta pessoa, como sucede no regime actual, posição com a qual concordo.

 

2- Não. Mesmo que através da Ordem dos Advogados. O direito vigente já obriga os advogados a efectuarem tais comunicações, através da Ordem dos Advogados. Sempre me pareceu uma má solução (ainda que através da Ordem dos Advogados)  na medida em que contende com algo que deveria ser “sagrado” na profissão de advogado – o sigilo profissional. O sigilo profissional existe primordialmente para proteger o cliente – é um direito que este tem a que o que chega ao conhecimento do advogado no exercício da sua relação profissional (e não necessariamente por comunicação do cliente) deve permanecer sob reserva absoluta. Em meu entender este é um principio fundamental, estruturante de um estado de direito e de uma sociedade regida pelo primado do direito. É um direito dos cidadãos enquanto tais. Não está obviamente em causa a má utilização do sigilo profissional para encobrir a prática de actividades ilícitas.

 

A advocacia é uma profissão que se rege por princípios éticos e deontológicos muito fortes, que sempre soube criar os mecanismos para – seja por via disciplinar, seja por via criminal – reagir eficazmente a eventuais utilizações abusivas e ilícitas do sigilo profissional. O que está em causa na legislação vigente e que se mantém no projecto de directiva, é a compressão desse direito fundamental dos cidadãos por força de um valor que o legislador considera mais importante que é a investigação das actividades de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo. Não retiro importância à investigação e à repressão do branqueamento de capitais ou do financiamento do terrorismo, mas penso que tal não se deverá fazer à custa da limitação de um direito tão fundamental como é o sigilo profissional do advogado.

 

Miguel Mendes Pereira

 

Sócio da Vieira de Almeida

Advogado especialista em Direito Europeu e da Concorrência

 

1 – Concordo com alguns dos pontos expressos no parecer da OA, nomeadamente o sublinhar do sigilo profissional a que estão sujeitos os advogados como garantia do Estado de Direito democrático e o apelo a que em circunstância alguma os advogados fiquem obrigados a comunicar informação à Unidade de Informação Financeira.

 

Não me revejo totalmente na forma absolutista como a questão é enunciada porque justamente num Estado de Direito democrático não existem valores absolutos – nem a vida – e há que proceder constantemente a uma ponderação e conciliação dos valores que a comunidade entendeu merecerem tutela constitucional.

 

Tenho também sérias dúvidas de legalidade relativas ao apelo feito para que a Directiva venha a impor aos Estados-membros o fim das acções ao portador. O art. 345.º do.  Tratado sobre o Funcionamento da União determina que o Direito da UE em nada prejudica o regime de propriedade nos Estados membros e a imposição de pôr termo às acções ao portador parece-me chocar de frente com este princípio sacrossanto do Direito Europeu.

 

2 – Um advogado ficar sujeito individualmente à obrigação de comunicar ou informar as autoridades, em caso algum, porque isso seria abrir uma porta perigosa. Mas não me choca que nalguns casos o advogado deva tomar uma decisão em conjunto com a sua Ordem profissional, nomeadamente com o seu Bastonário. Sublinhe-se que estamos a falar sempre e só de casos muito graves, de financiamento de terrorismo e branqueamento de capitais, todos os outros casos estão excluídos desta discussão e por isso a questão nem se suscita.

 

Se um advogado se aperceber a dado momento que a transacção do seu cliente que é suposto assessorar se destina a financiar uma operação terrorista, parece-me que qualquer troca de informação a este propósito só deve ter lugar entre o advogado e o responsável máximo da Ordem dos Advogados. Qualquer obrigação de informação que seja imposta neste contexto deve ser institucional e recair sobre a Ordem, a qual funcionará como filtro do advogado individual, trazendo a ponderação, distância e frieza que uma decisão tão séria sempre implicará.

João Maltez
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