Distorções e mínimos nas políticas sociais

22/04/2014
Colocado por: Elisabete Miranda
Fonte: Bruno Simão / Negócios

Fonte: Bruno Simão / Negócios

 

Qual é o valor mínimo indispensável de que uma pessoa precisa para viver e que o Estado deve assegurar? A resposta é: depende de quem for o destinatário directo do dinheiro. Se for um beneficiário do rendimento social de inserção (RSI), o Governo entende que 374,1 euros são suficientes para comer, vestir e pagar a habitação a uma família de dois adultos e duas crianças durante um mês inteiro. Já se o destinatário do dinheiro for uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), que funciona como intermediário na prestação do serviço público, o Governo já está disposto a entregar-lhe 600 euros por mês para servir refeições – e apenas refeições – a uma família da mesma dimensão.

 

Esta expressiva dualidade de critérios é denunciada num documento intitulado “os problemas e as soluções para a Segurança Social”, do Observatório sobre as Crises e Alternativas. A autora, a economista Cláudia Joaquim, exemplifica como a política social está enviesada em função de preconceitos consolidados em relação a determinado tipo de prestações sociais – neste caso, o RSI; como esses preconceitos dão origem à má orientação dos escassos recursos de que o Estado dispõe; e de como a aposta no desenvolvimento do terceiro sector, muito caro ao Governo, está nalguns casos a ser feito à custa do desinvestimento da protecção social assegurada pelo Estado.

 

Compare as diferenças

Ao longo dos últimos anos, a maioria no Governo não tem escondido o seu baixo nível de tolerância em relação ao RSI. De tal modo que, os gastos com a prestação social, em vez de terem subido para fazer face ao aumento do número de desempregados sem qualquer subsídio, tem vindo a reduzir-se. Para isso tem contribuído o apertar das condições de acesso à prestação social – a chamada “condição de recursos” – e também a descida do valor do apoio social.

 

Ao mesmo tempo que o Estado corta nas prestações sociais destinadas a aliviar a severidade da pobreza, tem sido reforçada a parceria com o chamado terceiro sector, através do lançamento do Programa de Emergência Social (PES), da Lei de Bases da Economia Social, da Rede Local de Intervenção Social ou do Fundo de Reestruturação do Sector Solidário, elenca o trabalho, que faz um instrutivo levantamento sobre a evolução histórica do terceiro sector ao longo do século XX.

 

A economista percorre as alterações introduzidas nalguns desses programas, e, num dos capítulos, onde se debruça sobre a “Rede Solidária de Cantinas Sociais”, chega a conclusões que, em sua opinião, são paradigmáticas quanto à trajectória da política social nos últimos anos.

 

Em síntese:

 

– os protocolos de cooperação que se encontram, avulso, através de motores de busca na internet (a Segurança Social não torna públicos os contratos), revelam que o Estado paga às IPSS 2,5 euros por cada refeição que estas sirvam. As refeições podem ser fornecidas sete dias por semana e duas vezes diárias. Além do dinheiro que recebem do Estado, as IPSS podem cobrar um euro a cada utente por refeição. Fazendo as contas, por mês, uma IPSS pode receber 150 euros do Estado para dar almoço e jantar a uma pessoa. Tratando-se de uma família de 4 pessoas, são 600 euros, havendo ainda a possibilidade de cobrar-lhes 1 euro adicional por pessoa/refeição.

– quem pode ir a uma cantina social? Os critérios para a atribuição de refeições são “relativamente genéricas” – os protocolos referem-se a pessoas com baixos rendimentos, desempregados, baixos salários e doenças crónicas, entre outros. O que é um baixo rendimento bem como a definição de carência económica para este efeito fica ao critério de avaliação de cada instituição.

 

Vejamos agora o que acontece, por contraste, com o RSI.

 

– no RSI, o Estado paga no máximo 178,15 euros por um titular; 89,07 euros pelo segundo adulto e seguintes; 53,44 euros por crianças e jovens com menos de 18 anos. Uma família carenciada constituída por dois adultos e duas crianças recebe no máximo um montante mensal de RSI de 374,10 euros. Caso os agregados aufiram algum rendimento por conta própria, recebem apenas o diferencial para atingir aquele patamar.

– no RSI, há ainda “um contrato de inserção” para ajudar os destinatários a “integrar-se social e profissionalmente”.

 

Estamos perante dois pesos e duas medidas, evidencia Cláudia Joaquim, uma das técnicas que colaboram no extenso documento sobre Segurança Social preparado pelo Observatório sobre Crises e Alternativas.

 

No caso do RSI, “verifica-se que os 374,10 euros correspondem, para o Governo, ao montante mensal necessário e suficiente para uma família com esta composição satisfazer as suas necessidades básicas, as quais ultrapassam naturalmente as despesas com alimentação”.

 

Já no caso das cantinas sociais, uma família da mesma dimensão, que almoce e jante todos os dias numa IPSS, representa para a Segurança Social um encargo de 600 euros mensais, podendo ainda a IPSS cobrar 240 euros à família pelas refeições (um euro por refeição por membro do agregado).

 

Mesmo que se parta do pressuposto que esta família-tipo beneficiária do RSI se desloca todos os dias à cantina social, ela pode ser obrigada a destinar 64% do RSI para o pagamento das refeições à IPSS, restando-lhe 134 euros para todas as outras necessidades básicas.

 

Estas e outras análises levam a economista a questionar em que medida faz sentido reforçar a transferência de recursos para as IPSS numa altura em que se cortam prestações sociais básicas aos mais desfavorecidos?; o que é mais eficaz, se as respostas directas prestadas pelo Estado, se as indirectas?; se serão as IPSS e os seus recursos geridos da forma mais eficiente? onde deve começar e parar a intervenção do terceiro sector?.

 

Propostas para reflexão, agora que parece que se avizinha (novamente) a reforma estrutural do Estado.

Elisabete Miranda